segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Tiago e a Igreja Apostólica: uma refutação à leitura desigrejada da epístola

 

A epístola de Tiago tem sido, ao longo dos séculos, alvo de leituras distorcidas, especialmente entre aqueles que buscam justificar uma fé individualizada e desprovida de comunhão eclesiástica. Entre os desigrejados contemporâneos, um argumento recorrente consiste em afirmar que Tiago teria escrito sua carta não à Igreja do Novo Testamento, mas apenas “aos judeus”, com base na saudação inicial: “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos que se encontram na Dispersão, saudações” (Tg 1.1).

Entretanto, uma análise histórico-gramatical séria revela que essa leitura é superficial e anacrônica. O contexto do Novo Testamento, a gramática do texto e o papel pastoral de Tiago no colégio apostólico demonstram que sua epístola é, de fato, dirigida à Igreja de Cristo; o novo Israel espiritual, formado por judeus e gentios regenerados em uma só fé.

1. A linguagem simbólica das “doze tribos”

O termo “as doze tribos da Dispersão” não é um limite étnico, mas uma metáfora teológica. Tiago utiliza a linguagem de Israel não como referência ao povo nacional, mas à Igreja como o Israel espiritual de Deus (Gl 6.16). Já não se trata da descendência de Abraão segundo a carne, mas dos “filhos da promessa” (Rm 9.8).

Essa apropriação do vocabulário veterotestamentário é recorrente no Novo Testamento. Pedro faz o mesmo ao escrever “aos eleitos que são forasteiros da Dispersão no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia” (1Pe 1.1), dirigindo-se a comunidades cristãs majoritariamente gentias. O apóstolo Paulo, por sua vez, aplica à Igreja expressões como “a circuncisão de Deus” (Fp 3.3) e “a descendência de Abraão” (Gl 3.29).

Tiago, portanto, escreve à Igreja universal sob o símbolo de Israel. A saudação inicial ecoa a linguagem profética que via o povo de Deus como “disperso”, aguardando o cumprimento da promessa messiânica. Em Cristo, esse novo Israel é reunido não geograficamente, mas espiritualmente, na comunhão do Espírito e na unidade da fé.

2. Tiago como relator e autoridade eclesiástica (Atos 15)

A hermenêutica reformada não interpreta Tiago isoladamente, mas o compreende à luz de sua função no colégio apostólico. Em Atos 15, ele aparece como relator do presbitério reunido em Jerusalém; o primeiro concílio da história da Igreja. A controvérsia girava em torno da inclusão dos gentios e da necessidade ou não da circuncisão mosaica.

Após ouvir os testemunhos de Pedro e Paulo, Tiago toma a palavra e declara:

“Irmãos, atentai nas minhas palavras... Julgo eu, pois, que não se deve perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus” (At 15.13,19).

Essa expressão “julgo eu” (em grego krinō egō) não é mera opinião pessoal, mas a fórmula decisória de um presbítero que relata a resolução conciliar. Tiago fala como autoridade eclesiástica sob direção do Espírito Santo, não como um rabino independente. Sua conclusão é recebida por toda a assembleia e registrada como deliberação colegiada:

“Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós” (At 15.28).

Tiago representa, portanto, o modelo neotestamentário de liderança eclesial; uma autoridade espiritual que atua em comunhão, com presbíteros e apóstolos, em busca do consenso sob o Espírito. O mesmo Tiago que escreve sobre “a oração dos presbíteros sobre os enfermos” (Tg 5.14) é o que fala em nome da Igreja reunida e ordenada.

A sua epístola, lida à luz de Atos 15, não é o eco de um misticismo individual, mas de uma fé comunitária, disciplinada e pastoral; uma fé que une doutrina e prática, graça e ética, comunhão e responsabilidade.

3. Convergência doutrinária entre Tiago, Paulo e Pedro

A teologia reformada reconhece plena harmonia entre Tiago, Paulo e Pedro. As aparentes diferenças se dissolvem diante de uma leitura contextual.

• Paulo enfatiza a justificação pela fé diante de Deus — a fé como raiz da salvação (Rm 3.28).

• Tiago enfatiza a justificação diante dos homens; a fé como fruto da regeneração (Tg 2.18).

• Pedro harmoniza ambas ao afirmar que “a vossa fé... é provada para resultar em louvor, glória e honra” (1Pe 1.7).

Todos falam, pois, de uma mesma fé viva, que se manifesta em obediência e amor.

A unidade entre Tiago e os demais apóstolos é atestada não apenas por suas cartas, mas pelos registros históricos. Em Gálatas 2.9, Paulo menciona Tiago ao lado de Pedro e João como uma das “colunas” da Igreja. A cooperação entre eles desmente qualquer leitura que tente isolar Tiago como uma figura judaica alheia à Igreja gentílica.

Assim, a epístola de Tiago não é um manifesto nacionalista, mas um tratado apostólico de vida cristã; escrito por quem serviu de ponte entre o antigo e o novo, entre a sinagoga e a Igreja, entre a Lei e o Evangelho.

4. O testemunho eclesiástico e pastoral de Tiago

Em sua carta, Tiago descreve uma comunidade organizada e pastoralmente conduzida. Ele fala de assembleias (synagōgē, 2.2), presbíteros (5.14), confissão mútua (5.16) e disciplina espiritual (5.19–20). Cada elemento revela uma igreja visível, com estrutura, ministério e responsabilidade comunitária.

Não há, portanto, espaço na epístola para o individualismo religioso que caracteriza os desigrejados modernos. A fé que Tiago descreve é vivida em meio ao corpo, sob a Palavra e sob pastoreio. O Evangelho, para Tiago, é encarnado na comunidade, não na solidão do “eu e Deus”.

A eclesiologia que emerge de sua carta é a mesma que se vê em Atos 15: uma Igreja que delibera, ministra, ora e se submete à direção do Espírito Santo. É a mesma Igreja que Paulo exorta a manter “a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Ef 4.3) e que Pedro chama de “sacerdócio real” (1Pe 2.9).

Conclusão

A leitura desigrejada da epístola de Tiago nasce de uma hermenêutica fragmentária e anacrônica. Desconsidera o contexto apostólico, ignora a simbologia teológica de Israel e despreza o testemunho histórico da Igreja primitiva.

Tiago não fala a uma religião sem corpo, mas ao corpo vivo de Cristo, espalhado entre as nações. Sua voz em Atos 15 e sua pena em Tiago 1–5 ressoam a mesma verdade: a fé cristã é comunitária, ordenada e visível. O cristianismo bíblico não é a negação da Igreja, mas a sua consumação.

O espírito desigrejado é, portanto, herdeiro direto das antigas seitas gnósticas, antinomianas e herméticas que, já nos primeiros séculos, procuravam dissolver a concretude da Igreja em um espiritualismo etéreo e elitista. Como os gnósticos, afirmam possuir uma relação imediata com Deus, desprovida de mediação pastoral ou comunitária; como os antinomianos, rejeitam a autoridade visível e o dever da obediência; e como as seitas místicas herméticas, reinterpretam as Escrituras à luz de uma experiência subjetiva, e não da fé “entregue de uma vez por todas aos santos” (Jd 3).

Afirmo, porém, que o mesmo Cristo que salva também congrega; o mesmo Espírito que regenera também edifica; e a mesma Palavra que justifica também ordena. Negar a eclesiologia de Tiago é negar o próprio Cristo, que prometeu edificar Sua Igreja (Mt 16.18).

Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, fala à Igreja de todos os tempos; o novo Israel de Deus, regenerado pela Palavra e sustentado pela comunhão dos santos.

Referências Bíblicas

Tg 1.1; Tg 2.2; Tg 2.14–26; Tg 5.14–16,19–20;

At 15.13–29;

Gl 3.29; Gl 6.16; Gl 2.9;

Rm 3.28; Rm 9.8;

Ef 4.3;

Fp 3.3;

1Pe 1.1,7; 1Pe 2.9;

Jd 3;

Mt 16.18.