quarta-feira, 20 de novembro de 2024

POLÍTICA EDUCACIONAL: UM DIÁLOGO MAIS QUE CENTENÁRIO – PLATÃO E AGOSTINHO

 

 





 

 

 

 

 

“Por conseguinte, o hábil guardião de uma coisa

é também o hábil ladrão dessa mesma coisa.”

 A República – Platão

 

 

POLÍTICA EDUCACIONAL: UM DIÁLOGO MAIS QUE CENTENÁRIO – PLATÃO E AGOSTINHO[i]

 

POLÍTICA EDUCATIVA: UN DIÁLOGO DE MÁS DE UN SIGLO – PLATÓN Y AGUSTÍN

 

EDUCATIONAL POLICY: A MORE THAN CENTURY-OLD DIALOGUE – PLATO AND AUGUSTINE

 

 

Júlio César PINTO[1]

e-mail: rev.juliocesar@hotmail.com

 

 

Afonso Welliton de Sousa NASCIMENTO[2]

e-mail: afonsows27@gmail.com

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RESUMO: O presente trabalho vem explorar as visões sobre educação e política de Platão e Agostinho, destacando suas abordagens distintas. Platão, no contexto da democracia limitada de Atenas, propôs uma cidade ideal com três classes sociais (artesãos, militares e guardiães) e defendeu a ideia de um governante filósofo. Para ele, a educação deveria manter a hierarquia social e a classe superior deveria perpetuar o poder. Contrariamente, Agostinho, vivendo no limiar da antiguidade para a Idade Média, enfatizava a educação e a fé cristã como meios de transformação social e pessoal, procurando disseminar o conhecimento cristão a todos, incluindo os bárbaros e hereges. De um lado Platão mirava uma educação restrita às classes sociais superiores, por outro lado Agostinho buscava a inclusão e a aplicação prática da fé e do conhecimento para a melhoria de todos na sociedade. A divergência entre suas teorias encontrou uma ironia histórica, a Era das Trevas, implementando a limitação do acesso ao conhecimento por parte da própria igreja de Agostinho.

 

Palavras chave: Educação, Política Pública, Agostinho, Platão.

 

 

RESUMEN: Este trabajo explora las opiniones sobre educación y política de Platón y Agustín, destacando sus distintos enfoques. Platón, en el contexto de la democracia limitada de Atenas, propuso una ciudad ideal con tres clases sociales (artesanos, militares y guardianes) y defendió la idea de un gobernante filósofo. Para él, la educación debería mantener la jerarquía social y la clase alta debería perpetuar el poder. Por el contrario, Agustín, que vivió en el umbral de la antigüedad a la Edad Media, enfatizó la educación y la fe cristiana como medios de transformación social y personal, buscando difundir el conocimiento cristiano a todos, incluidos los bárbaros y herejes. Por un lado, Platón aspiraba a una educación restringida a las clases sociales altas; por otro lado, Agustín buscaba la inclusión y la aplicación práctica de la fe y el conocimiento para la mejora de todos en la sociedad. La divergencia entre sus teorías encontró una ironía histórica: la Edad Media implementó la limitación del acceso al conocimiento por parte de la propia iglesia de Agustín.

 

Palabras clave: Educación, Políticas Públicas, Agustín, Platón.

 

ABSTRACT: This work explores the views on education and politics of Plato and Augustine, highlighting their distinct approaches. Plato, in the context of Athens' limited democracy, proposed an ideal city with three social classes (artisans, military and guardians) and defended the idea of ​​a philosopher ruler. For him, education should maintain social hierarchy and the upper class should perpetuate power. On the contrary, Augustine, living on the threshold of antiquity to the Middle Ages, emphasized education and Christian faith as means of social and personal transformation, seeking to disseminate Christian knowledge to everyone, including barbarians and heretics. On the one hand, Plato aimed for an education restricted to the upper social classes, on the other hand, Augustine sought the inclusion and practical application of faith and knowledge for the improvement of everyone in society. The divergence between their theories met with historical irony, the Dark Ages implementing the limitation of access to knowledge by Augustine's own church.

 

Keywords: Education, Public Policy, Augustine, Plato.

 

Introdução

           Tão vasto universo temos diante de nossa diminuta e tacanha sabedoria! É o que diariamente descobrimos quando decidimos embrenhar-nos na história acerca de qualquer que seja o tema. E, quando temos como cerne do discurso a educação, esse universo se torna ainda mais vasto do que podemos imaginar uma vez que se trata da própria formação humana desde a sua mais longínqua existência.

           Certamente temos centenas de expoentes que trataram do assunto em questão e, nosso dilema em escolher sobre o pensamento de quem escrever, se tornou parco diante do início da sistematização temática, bem como do aprofundamento dessa sistematização vistos em dois colossais da história: Platão e Agostinho.  

           No presente estudo teórico, serão abordados pensamentos e/ou ações perpetradas por ambos. Qual a forma que definiam tanto um quanto o outro acerca da maneira da qual se pode absorver o conhecimento? Como esse conhecimento se tornaria difundido e a quem difundi-lo, e qual a finalidade desse conhecimento, para onde se deveria ir?

No diálogo de Céfalo com o já idoso Sócrates, esse último afirma que mantinha profunda consideração em, não somente manter conversas, mas também extrair pensamentos, doutrinas e tudo o que pudesse aprender com os mais experientes na vida (PLATÃO, 380 a.C., pg 04). Esse pensamento de Platão é o apontamento de algo que não se pode perder de vista: aprender com o passado. Tal princípio é visto anteriormente na fala de Salomão (900 a.C.) quando afirmou: “Não removas os marcos antigos que puseram teus pais”. (Provérbios 22:28)

A visão de uma política educacional tanto em Platão quanto em Agostinho, na presente abordagem, caminhará pela metafísica perceptível e conhecida em seus escritos. Primeiramente seguiremos uma breve abordagem biográfica de ambos; da mesma forma, em seguida, veremos suas perspectivas em linhas gerais sobre política e educação; e, por último, para onde apontaram suas doutrinas.

A valorização do novo, pelo fato de ser novo e em detrimento do antigo, não pode ser o imo da construção de políticas. Dever-se-ia analisar a história, os pensamentos de cada momento e aprender o que deles decorreu de certo ou errado, mantendo a chama da humildade acesa em reconhecer que o caminho que ora se segue, ou o caminho que se deseja percorrer, já pode ter sido percorrido por outros e isso não deve ser esquecido. Assim já havia dito Salomão: “Não existe nada novo debaixo do sol” (ECLESIASTES 1.9).

A simples mudança de nomenclaturas não nos assegura que uma ideia, seja ela qualquer, inclusive do que se diz acerca de uma nova política e/ou de que provenha de uma mudança superficial a partir de outras, garanta o sucesso em nova empreitada. As políticas estão recheadas de idealismo em consonância com o pensamento de seus propositores e, promulgar uma imparcialidade, apesar de necessária, é mais que utópico. E é nesse âmago que a análise histórica deveria enxergar. 

 

Agostinho

Agostinho viveu no limiar da antiguidade para a era medieval. Nesse contexto histórico, as guerras e, literalmente, as barbáries eram frequentes. Após sua conversão, ele se dedica ao conhecimento mais aprofundado em teologia e filosofia, tendo referência desta última, primordialmente, a Platão.

Entreter bárbaros com o evangelho não era a ideia agostiniana, antes se empenhou na difusão e ensino da fé cristã a esses como modus essendi et vivendi[3]. Mas, como ensinar o evangelho, como levar o conhecimento a aqueles que não sabiam sequer ler? Como fazer com que, além de entenderem, esse conhecimento se tornasse a verdade fundamental para vida deles?

Para isso, o “pensamento de Santo Agostinho foi de fundamental importância para a consolidação do cristianismo, uma vez que trouxe uma proposta de reorganização da vida social e de formação do homem” (MELLO E DE PAULA, p. 1). Todavia, não foram apenas os bárbaros a influenciar no conceito educacional do mestre, mas seu próprio contexto de embates eclesiásticos contribuiu, em muito, para consolidação de seu pensamento.

Após voltar de Cartargo, o ainda jovem Agostinho desprezou o ensino e a repreensão de sua mãe e, como professor formado, preferiu permanecer na seita dos maniqueus, da qual havia se tornado adepto, a dobrar-se perante a exigência materna para que abandonasse tal cardume, para abraçar ao catolicismo, chegando a chamá-la de muliercula[4].

Somente anos mais tarde, quando frequentava as homilias de Ambrósio em Milão que, com sua retórica, aproximou Agostinho do cristianismo e o fê-lo apaixonar-se pela doutrina (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota pg 30), muito embora estivesse enamorando com o ceticismo (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota  pg 32).

Mas, foi aos trinta e dois anos, com a leitura de Platão, que Agostinho se deparou com um deus que ele não conhecia. Um deus que era “sem limites, sem limitações, um Deus infinito e inextenso. Só Ele, só um ser assim, será o princípio e a razão de ser de tudo”.  (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota  pg 34)

É aqui que os questionamentos de Agostinho, acerca da vida, acerca das dúvidas essenciais e existenciais que possuía, começaram a fervilhar de possibilidades em obtenção de respostas tentando ver se havia alguma relação do deus de Platão com o Deus do cristianismo do qual sua mãe era fervorosa adepta e tanto lhe instigou a conhecer quando era mais jovem e que ele havia desprezado.

Tomado por esse ímpeto, embrenhou-se na leitura da Escritura até que, lendo Apóstolo Paulo, agarrou-se à graça que, naquele instante, acabara de conhecer. (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota pg 37)

Agostinho viveu no tempo em que a política, educação e economia, eram comandadas ou, no mínimo, fortemente influenciadas pelo clero. Após ser sagrado bispo, o ex alvorotado mantinha uma organização sem igual em tudo aquilo que lhe fosse confiado. Era, por muitos, venerado e atrás dele corriam para que lhes escrevesse, ou instruísse de algo ou para ter um objeto de lembrança, como aqueles que hoje correm atrás do autógrafo de um ídolo.

Administrava os bens da igreja, atendia capatazes, mantinha albergues para viajantes, proporcionava sustento aos pobres de olho naqueles que queriam viver às custas do legado da igreja; tudo mantido por doações. E, ainda assim, chegou a ser acusado de austeridade por não receber determinadas doações, como de pais que queriam defraudar ao direito de filhos, ou de desonestos que queriam fugir do fisco. Concomitantemente a isso, aumentavam insultos e impropérios da parte de seus maiores opositores, os violentos e inescrupulosos donatistas[5].  (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota pg 59)

Esses últimos acabaram se tornando uma seita anti-social que convulsionava a comunidade por onde estivessem: roubando, espancando, torturando fiéis e até mutilando bispos para os inutilizarem ao exercício de seu ofício ou matando-os. Dessarte, Agostinho procurava manter e propunha acordos de paz e comunhão até com alternância de governo entre os bispos católicos e bispos donatistas, contudo, sem sucesso. (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota  pg 63-65)

Entretanto, não foi somente os donatistas os responsáveis por afligirem e promoverem convulsões sociais no tempo de Agostinho. Uma seita muito mais perigosa vinha fermentando seu germe: Os Maniqueístas. Esses provieram dos ensinos de Mani, (Manes) homem muito viajado, de vasta cultura, conhecimento profundo de várias religiões, poliglota. Desenvolveu a própria religião, com intensão de ser universal e colecionou grande número de seguidores que passaram a divulgar as suas obras. (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota pg 66)

A percepção religiosa de Mani condensou-se em afirmar sobre a existência de duas forças opostas que regiam o universo: o deus do Bem — Ormuz — , o deus do Mal — Ariman. Como resultado disso, seu conceito moral admitia extremos que se opunham à fé cristã. (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota pg 66-67)

A moral maniqueísta condensa-se no que Manés chamou preceito dos três selos — o selo da mão, o selo dos lábios, o selo do seio. Ao homem virtuoso é vedado, pelo selo da mão, ferir, matar, fazer a guerra; pelo selo da boca, o homem virtuoso é obrigado a dizer a verdade e a nunca comer carne nem alimento impuro; ao homem virtuoso é vedado, pelo selo do seio, continuar a obra da carne, prolongar a vida pela geração. (PEREIRA, in Cidade de Deus, nota pg 67)

 

Esse ensino maniqueísta havia sido abraçado por Agostinho em sua juventude. Entretanto, acabou se tornando o seu mais severo opositor. A seita se desfez, contudo ainda reverberavam algumas defesas dessa doutrina no século V. Período esse em que surge nova seita, a dos Pelagianos, que também deram, mais uma vez, impulso ao ensejo apologético do bispo de Hipona.

 

Platão

Aproximadamente em 428 a.C., Platão nasce, um ano após a morte de Péricles, grande orador e debatedor na afamada assembleia ateniense, onde e quando rogavam o título de exemplar democracia.

Entretanto, essa democracia era para poucos, visto que a permissão de se falar na assembleia era concedida apenas a aqueles que possuíam o título e direitos de cidadão. Fora estavam os escravos, os que não tinham recursos de atuação, como retórica e oratória, as mulheres, os estrangeiros. Era, de fato, uma oligarquia. O ano da morte de Platão, aproximadamente em 348 a.C., ocorreu dez anos antes da batalha de Queronéia, quando Felipe da Macedônia conquistou o mundo grego. A vida de Platão transcorreu num período do apogeu político grego e com ares de liberdade. (CIVITA, 1972, pg 47-49).

Sua ascendência é dentre os nobres atenienses, representantes valorizados no mundo político de sua época. Sua mãe, Perictione, era irmã de Cármides e prima de Crítias, que foram dois dos trinta tiranos que governaram a cidade em tempos de outrora.

Num segundo casamento de sua mãe, ela se casa com um personagem político conhecido da época de Péricles, Pirilampo. Esse é o arcabouço histórico de Platão que o fez nutrir um certo escárnio pelos políticos de sua era. Ele assim manifestou em seus escritos como quem conhecia muito bem a coxia política.  

 

O cavaco

Platão nos deixou considerado, em Político, de modo bem sucinto no diálogo entre Sócrates, o Jovem, e o Estrangeiro definindo política como a “ciência que cuida de homens que vivem em comunidade” (PLATÃO, 1972, pg 220). E, como afirmado, Platão asseverou que o objetivo do governante deve, em primazia e essência, ... envidar todo esforço em suprir aquilo que, de fato, supra a carência daqueles que estão debaixo de seu jugo. (PLATÃO, 1972 pg 98).

Por sua vez, Agostinho em “A Cidade de Deus” considerou como sendo  direito divino a arte de governar que poderia ser concedida aos homens por meio da graça. Por outro lado, na Cidade da Terra, o extremo oposto da primeira, os homens soberbos “na sua ânsia de domínio, que, embora os povos se lhe submetam, se torna escrava da sua própria ambição de domínio.” (AGOSTINHO, 1998, pg 98)

Alguns gregos pré-socráticos entendiam que, como exemplo, os defensores do pitagorismo argumentavam haver uma

...identidade fundamental, de natureza divina, entre todos os seres; essa similitude profunda entre os vários existentes era sentida pelo homem sob a forma de um ‘acordo com a natureza’ que, sobretudo depois do pitagórico Filolaus, será qualifica como uma `harmonia`, garantida pela presença do divino em tudo. (CIVITA, 1972, pg 9)

 

Esse conceito é absorvido por Platão quando chegou a frequentar as escolas pitagóricas. Assim temos algo em comum nos escritos tanto de Platão como de Agostinho onde demonstram haver certa defesa de um comunicado divino inato ao homem.

No ano de 387 a.C. Platão funda, em Atenas, a Academia onde ele instigava o conhecimento por meio da investigação científica e filosófica. A esse tempo e na mesma cidade, outro personagem mantinha outra escola, Isócrates que, em caminho divergente de seu contemporâneo, atendia àqueles que pretendiam ingressar no mundo da política, ensinando retórica fundamentada nos sofistas.

Enquanto o primeiro buscava uma política que não se limitava à prática, insegura e circunstancial, mas uma investigação realizada de forma acentuadamente sistemática sobre o alicerce do comportamento humano, o outro ensinava tão somente pontos de vista que o orador deveria defender de forma convincente na Assembleia. (CIVITA, 1972, pg 52)

Platão deixou um legado que mostrou fases diferentes em seu pensamento. A primeira quando transparecia que sua dialética apontava para aqueles diálogos socráticos que estavam no limiar do confronto de consciências. A segunda quando estremeceu essa transparência e se apoiou em absorções que ele fez a partir do pitagorismo, sendo mais teórico e impessoal. Esta fase amadureceu tomando a forma de uma investigação do que poderia haver de ligação entre ideias. (CIVITA, 1972, pg 56-57)

Entretanto, Platão entendia que essa arte de governar era algo concedido pelos deuses, algo peculiar a poucos. Todavia, fazer a distinção entre os que teriam esse, digamos, talento divino dos que não possuíam, nos conduz à necessidade de discernir entre os soberbos e os dotados. Os soberbos são aqueles que invejavam e não possuíam talento natural ou não se amadureciam, ou ainda nem adquiriam experiência; enquanto os dotados seriam aqueles que nasceram com esse dom e amadureciam bem como adquiriam experiência com o passar dos anos.

Platão entendia que esse amadurecimento só poderia ser alcançado pela filosofia. Essa maturação seria o descortinamento acerca de tudo aquilo que podemos definir no mundo visível a partir de seu original, perfeito, portanto, imutável, incorpóreo, eterno, do mundo das ideias.

Esse conhecimento seria anterior ao nascimento quando a alma contemplaria a ciência de todas as coisas quando ainda conviviam com os deuses. Nesse mundo material seria a filosofia que abriria a porta da mente para se entender e governar. O que dizemos, aqui, é amplamente visto e debatido acerca da mensagem trazida pelo Mito da Caverna.

No diálogo Político, o personagem Estrangeiro fala dessa classe fazendo uso daquilo que ele chamou de um mito, onde a figura do pastor divino é em semelhança ao rei, ao governante. Entretanto, para ele, os políticos não diferiam em nada dos seus súditos, exceto pela “educação e instrução que recebem” (PLATÃO, 1972, pg 229). 

Ainda assim, Platão aprofunda nesse ínterim, a fim de averiguar se, de fato, os políticos estão acima dos seus tutelados e para defini-los em duas categorias de “Pastor humano: tirano, ou rei?” (PLATÃO, 1972, pg 230), que seguem, não respectivamente, como sendo aqueles que: ou são aceitos de bom grado, ou se impõem pela força.  

Quanto ao que se seguiu, Agostinho cria que, sendo tirania, sendo política, sendo guerra, sendo paz, tudo seria resultado da Providência divina com a finalidade de acender, pelas virtudes resultantes da provação, o indivíduo amaneirado à uma vida mais gloriosa para além desta terra. (AGOSTINHO, 1996, pg 102). Desta maneira é que, por meio destas coisas,

“...a paciência de Deus chama os maus à penitência e o açoite de Deus aos bons ensina a paciência... o único e mesmo golpe, caindo sobre os bons, põe-nos à prova, purifica-os, afina-os e condena, arrasa, extermina os maus. Daí que, na mesma aflição: — os maus abominam a Deus e blasfemam, e os bons dirigem-Lhe as suas súplicas e louvam-No. O que mais interessa não é o que se sofre, mas como o sofre cada um.” (AGOSTINHO, 1996, pg 119).

Platão concorreria ajudando a Agostinho dizendo:

Assim, Deus, dado que é bom, não é a causa de tudo, como se pretende vulgarmente; é causa apenas de uma pequena parte do que acontece aos homens, e não o é da maior, já que os nossos bens são muito menos numerosos que os nossos males e só devem ser atribuídos a Ele, enquanto para os nossos males devemos procurar outra causa, mas não Deus. (PLATAO, 380 a.C., pg 88)

 

           Tendo em mente essa concordância, poder-se-ia afirmar que a trajetória política de um povo também seria entendia por ambos de maneira similar.

 

 

 

O Conhecimento

Agostinho definia a existência de dois tipos de conhecimento. Um, sendo permanentemente mutável, e outro sendo imutável. O mutável é assim definido pois é resultante de algo imperfeito e que precisa ser mudado. Já o imutável corre em sentido oposto dizendo respeito ao que não precisa de modificações, pois não se muda o que é perfeito. Aranha, sintetizando o pensamento agostiniano diz que:

O ser humano receberia de Deus o conhecimento das verdades eternas, o que não significa desprezar o próprio intelecto, pois, como o Sol, Deus ilumina a razão e torna possível o pensar correto. O saber, portanto, não é transmitido pelo mestre ao aluno, já que a posse da verdade é uma experiência que não vem do exterior, mas de dentro de cada um. Isso é possível porque “Cristo habita no homem interior”. Toda educação é, dessa forma, uma autoeducação, possibilitada pela iluminação divina (ARANHA, 2006, p. 178)

 

Esse conceito agostiniano pode ser deduzido do ensino de Tiago, o apóstolo, que afirmou: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança.” (Tiago 1:17).

Tal era esse conceito em Agostinho que, ao falar acerca dos males que os bárbaros julgavam ser o resultado de uma opressão advinda da religião cristã que os proibia de cultuar a seus deuses, assegurou:

...não tiveram esses deuses a menor preocupação com a vida e os costumes das nações e suas gentes que os veneravam, mas, pelo contrário, permitiram, sem proferirem qualquer das suas terríveis proibições, que fossem atingidas por tão horrendos e destestáveis males, não só nos seus campos e vinhas, nas suas casas e bens pecuniários e, por fim no seu próprio corpo que está submetido à alma, mas também que fossem atingidas na própria alma, e permitiram mesmo que elas se afundassem nesses males e se tomassem na pior gente... — onde estão os lugares destinados a ouvir os preceitos dos seus deuses para reprimirem a avareza, destruírem a ambição; — onde os povos ouçam o que os deuses preceituam acerca da repressão da avareza, da destruição da ambição, do refreamento da luxúria; (AGOSTINHO, 1996, pg 207-208)

 

Com isso, afirmou que o mal moral, ou para onde quer que se dirigisse um governo pesando sua mão, afligindo aos seus súditos, não seria resultado da proibição dos cultos pagãos por parte do cristianismo, mas seria resultado da própria perversidade que esses últimos manifestavam.

E, tal perversidade moral era resultado da falta de exigência moral da parte dos deuses que os pagãos procuravam adorar, pois nunca demonstravam haver uma régula fidei[6]. (AGOSTINHO, 1996, pg 207). Desta maneira, na visão agostiniana, não somente os homens, mas tudo que decorre desse, seja cultural, educacional, ou política, etc, nada mais é do que um mero reflexo da moral, ou falta dela, do “deus” que ele busca e venera.

Essa definição de Agostinho adapta-se ao conceito de Platão acerca de dois tipos de conhecimento, que eram apontados a partir de uma dualidade existencial que o primeiro propôs: de um lado ter-se-ia o Belo, o Bom, o Grande, como perspectiva do eterno, trazendo os dois primeiros seus conceitos dos valores estéticos e morais, e o terceiro a partir das relações matemáticas; e do outro lado a corporeidade dessas questões.

 

A educação

Como grafou Platão no diálogo de Sócrates com Glauco, acerca da razão de ser do político, o objetivo do governante deve, em primazia e essência, não direcionar o exercício de seu ofício como sendo algo objetivado para proveito pessoal, mas tão somente deve envidar todo esforço em suprir aquilo que, de fato, supra a carência daqueles que estão debaixo de seu jugo. (PLATÃO, 380 a.C., pg 39)

Desta maneira, entende-se que a valorização do direito deveria caminhar juntamente com o exercício da política na sua mais excelente forma, tendo como alvo as reais necessidades de quem se governa. E, ninguém mais para exercer livremente essa política ou construí-las do que os próprios representantes eleitos para esse fim.

Na República, Platão elabora um conceito de cidade ideal onde ela seria mantida por três classes racionalmente divididas entre: artesãos, militares e guardiães. Os artesãos se ocupando da produção para subsistência da cidade, os militares para defesa, e os guardiães para o desenvolvimento, regulação e manutenção das leis.

Nessa utópica cidade platônica, os laços familiares não deveriam existir. As mulheres pertenceriam a todos os guardiães e procriariam de acordo com uma regulação dada em lei, mas nenhum pai conheceria seu filho bem como o filho não deveria saber quem seria seu pai. A educação, assim, também seria um papel estritamente governamental, nada seria papel da família que nesse plano, era inexistente.

Essa utopia social seria possível se, e somente se, o governo fosse entregue a aqueles que detinham o conhecimento ideal, o conhecimento mais abrangente das coisas: um único governante rei e filósofo. Este seria escolhido dentre os guardiães, aquele que mais se destacasse em provas que abrilhantassem seu patriotismo e resistência. (CENICA, 1972, pg. 61)

A princípio, vemos Agostinho caminhando com Platão nessa busca pelo conhecimento e pela forma de ‘transmissão’ do mesmo, o que apontaríamos como sendo educação. Neste ínterim ambos concordavam em haver um conhecimento inato. Contudo, divergindo com Platão, Agostinho aponta que essa sabedoria, esse conhecimento era manchado pelo afastamento do homem em relação a Deus.

 

Mas, para falar-vos claro, seja o que fôr a sapiência humana; vejo que ainda não a possuo. Mas apesar dos meus trinta e três anos julgo que não devo desesperar de alcançá-la. Desprezando tudo o que os homens chamam bens, resolvi procurá-la. Como as razões dos Académicos me arrastavam, julgo ter-me armado contra eles por esta discussão. Ninguém ignora que só aprendemos pelo peso da autoridade ou da razão. Para mim é certo que nunca me afastarei da autoridade de Cristo, que tenho por superior a todas. Quanto ao que exige raciocínio subtil, pois que desejo ardentemente não só crer mas compreender a verdade, confio poder encontrar entre os platónicos o que não repugne aos nossos mistérios, (AGOSTINHO, LIVRO III, XIX, 43, pg 133, MCMLVII)

 

Pensando nisso, o acesso à sabedoria, para Agostinho, só teria lugar na vida humana por duas vias: razão e fé; ao que Platão apontaria apenas para a razão pela instrumentalidade da filosofia. Na visão agostiniana, a autoridade de Cristo aponta para o que se diria de uma fé supra racional, no sentido de que haveria necessidade do exercício (existência) da fé para que a razão fosse, de fato, iluminada; podendo, assim, entender e discutir questões muito mais complexas do que simplesmente se faria com o uso estrito da razão.

 

Políticas

Na teoria de Platão, o ideal para haver uma educação efetiva e eficaz seria a existência de um governo, a partir de um Rei-Filósofo, em que se estabeleceria um estado controlando tudo, por meio das três camadas sociais, inclusive no que diz respeito à procriação e essa apenas oriunda da casta superior, a dos guardiães.

Assim, a política educacional proposta por Platão seria a educação que proporcionasse a manutenção de castas conservando o artesão na sua limitação, como também os militares. A classe superior, a dos guardiães, se perpetuaria no poder pela restrição da educação às outras duas classes sociais. Como política pública, essencialmente no uso restrito do termo, a teoria proposta de Platão não se implementou como desejado.

Agostinho, nesse ponto, caminhou em direção contrária à Platão. Seu desejo em propagar o evangelho aos bárbaros e tornar-lhes comum o conhecimento a todos, ou seus diversos embates contras as seitas que surgiram de dentro do próprio catolicismo foi onde ele aplicou todo o seu arcabouço acadêmico.

Ele não o fez apenas para si, ou para sua classe, fez no intuito de tornar comum seu pensamento a todos. Aos hereges, mostrou-lhes como ele via a cada uma das propostas destas seitas pela via do debate, e até mesmo aceitando compartilhar o governo com os seus opositores em alternância de poder.

Aos leigos difundia o ensino, mas fazendo uso de uma fala comum à massa popular para se fazer entendido por todos. Doutor sim, mas entendia a necessidade de comunicar ao maior número de pessoas o seu conhecimento.  Com isso, Agostinho foi platonista até onde isso não lhe subjugou a fé, ou até onde não o impedisse que outros obtivessem o conhecimento por serem de outras classes sociais. 

 

Considerações finais.

A história nos mostra a ironia dessa divergência entre Platão e Agostinho. Não vimos os gregos satisfazerem à teoria platônica, nem Agostinho defender tal coisa. Todavia vimos o famigerado e bem conhecido Período das Trevas como resultado de política pública imposta pelo clero da instituição que Agostinho havia defendido no passado com tanta garra, por anos a fio, desde a sua conversão até a sua morte.

A Era das Trevas foi aquele período quando e onde se mantiveram castas sociais que impediam à plebe o acesso ao conhecimento, até mesmo a aquele conhecimento que Agostinho tanto defendeu, que era o livre acesso ao evangelho, ao conhecimento bíblico. Historicamente conhecida, até reproduzida na ficção O Nome da Rosa, a negação do acesso ao conhecimento bíblico se tornou um fato e apenas tiveram esse direito o clero. Da mesma forma o clero também manteve e controlava uma distância entre as classes nobre x povo, conforme seus interesses.

Os pensadores, Guardiães na ideia de Platão, mantiveram por mais de um milênio o status quo de: pensantes x nobres x povo pela negação da educação, pela negação de políticas públicas que favorecessem aos governados o conhecimento.  A própria definição platônica de política como sendo ações dos governantes em favor do seus governados se viu ofuscada nesse período regido pela classe pensante do clero. Isso nos faz enxergar o sentido da frase de Platão no topo deste trabalho: Por conseguinte, o hábil guardião de uma coisa é também o hábil ladrão dessa mesma coisa.” (PLATÃO, 380 a.C., Livro I)

A igreja acabou implementando políticas educacionais que foram o inverso daquilo que presava “Sócrates”, assim como o oposto do princípio visto em Salomão: ‘removeram os marcos antigos que puseram seus pais’. Desta forma, tanto na visão agostiniana, quanto na visão platônica de que somos reflexos do deus que se adora, a igreja havia se tornado o reflexo de um deus separatista, elitista e ditatorial.

 

 

REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria Lúcia de A. Idade Média: a educação mediada pela fé. In: ____. História da Educação e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3. ed. São Paulo: EDITORA MODERNA, 2006, p. 154-193.

 

BIBLIA SAGRADA, ed. Almeida Revista e Atualizada com números de Strong, OLIVE TREE BIBLE SOFTWARE Versão: 7.15.5.0 Wednesday, July 03, 2024 at 4:13:31 PM

 

CIVITA, Victor Ed.; Os Pensadores; ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL, SP, 1972

 

HIPONA, Agostinho; Contra os Académicos -  Diálogo Em Três Livros; TRADUÇÃO E PREFACIO DE VIEIRA DE ALMEIDA - COIMBRA — MCMLVII Disponível em https://www.passeidireto.com/arquivo/29076757/contra-os-academicos-santo-agostinho

 

HIPONA, Agostinho; Cidade de Deus, VOLUME I, (Livro I a VIII); 2.“ Edição; FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, 1996.

 

MELLO, José J. P.; DE PAULA, Andriely S. O papel da educação no Processo Santificador. Maringá. Artigo publicado no VIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais, de 16 a 18 de Setembro de 2009.

 

PLATÃO, A República, Livro I, 380 a.C. Acessível em: https://www.baixelivros.com.br/ciencias-humanas-e-sociais/filosofia/a-republica

 

PLATÃO, Os Pensadores - Diálogos, Editora Abril, 1972.

                                                                            

 



[1] Licenciado em Pedagogia e história, bacharel em teologia

[2] Universidade Federal do Pará (UFPA), Abaetetuba – PA – Brasil. Doutor em Educação. Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia

[3] Modo de ser e viver

[4] Mulherzinha qualquer

[5] Seita oriunda do catolicismo famosa por práticas de orgias após ritos de sagração e outros atos inaceitáveis a cristãos.

[6] Regra de fé



[i] Trabalho entregue na UFPA – ABAETETUBA – PA como aluno ouvinte do PPGCITI