quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Quem eram os fariseus nos tempos de Cristo e quem são os fariseus de hoje

Nos dias de Cristo, os fariseus se destacaram como um dos principais grupos religiosos do judaísmo. Flávio Josefo, em suas obras históricas, descreve-os como uma seita rigorosa, zelosa em preservar a Lei e as tradições dos antepassados. Eles eram reconhecidos entre o povo por sua influência, pois, segundo Josefo, gozavam de grande estima popular ao apresentavam-se como guardiões da santidade da nação.

No livro Antiguidades Judaicas (XVIII, 1.3), Josefo declara: "Os fariseus vivem com grande parcimônia e se abstêm dos prazeres, seguem em conformidade com a letra da lei. Gozam de estima entre o povo, e tudo o que dizem sobre a religião é acreditado, tanto que mesmo os reis e os mais altos dignitários seguem seus decretos." Essa influência demonstra como eles tinham poder de moldar a consciência religiosa de Israel. Contudo, essa aparência de zelo escondia um grave problema: a superficialidade de sua compreensão da Lei. Para eles, a Lei mosaica funcionava quase como um código civil e cerimonial, destinada a organizar a vida externa da sociedade, e não como expressão da vontade santa e espiritual de Deus que deveria conduzir o coração do homem à orientação interna e verdadeira.

Jesus desmascara essa distorção repetidas vezes. Os fariseus se preocupavam em dizimar da hortelã, endro e cominho, mas negligenciavam “os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé” (Mt 23.23). Transformaram a Lei, que é “santa, justa e boa” (Rm 7.12), em um fardo insuportável, por confundi-la com um sistema meramente externo de observâncias. E por assim fazerem, corromperam sua finalidade, pois a Lei fora dada para revelar o caráter santo de Deus e apontando para a necessidade de um Redentor.

Mas, se olharmos ao nosso redor, veremos que o espírito farisaico não ficou restrito ao primeiro século. Hoje, ele ressurge com outra roupagem. Se antes os fariseus distorceram a Lei reduzindo-a as disposições exteriores, agora muitos distorcem a mensagem cristã anulando a própria necessidade da Lei. Enquanto os antigos diziam: “cumpro externamente e estou justo diante de Deus”, os modernos proclamam: “não há Lei para cumprir, pois isso era só para os judeus”. Ambos, no entanto, incidem no mesmo pecado: rejeitam a verdadeira função da Lei como revelação da santidade de Deus e espelho que expõe o pecado humano (Rm 3.20).

Não podemos deixar de apontar também os legalistas modernos que, à semelhança dos antigos, desprezam ou simplesmente desconhecem os princípios espirituais da Lei divina. Eles visam um sistema de regras externas, onde a obediência é medida por aparências e formalismos, e não pela transformação do coração. Tais pessoas parecem defender a Lei, mas na prática a corrompem, pois ignoram que sua essência é espiritual (Rm 7.14) e que sua aplicação verdadeira só pode ser compreendida em Cristo. Assim como os fariseus de outrora, eles se vangloriam de observâncias externas, mas deixam de lado a justiça, a misericórdia e a fé; por isso, permanecem culpados diante do mesmo Deus que sondou os fariseus no primeiro século.

É comum ouvir, em nossos dias, vozes que afirmam que o cristão nada tem a ver com mandamentos, que tudo foi cravado na cruz e, portanto, qualquer referência à Lei seria legalismo. Esta leitura superficial e perversa repete o erro dos fariseus antigos: separa a Lei da sua dimensão espiritual que aponta os pecados e nos é guia para santificação. A diferença é que, se antes a Lei era idolatrada como um fim em si mesma, agora é desprezada como se não tivesse valor algum. Ambas as posturas revelam um coração endurecido, incapaz de enxergar que a Lei conduz a Cristo (Gl 3.24) e que, mesmo após a obra consumada no Calvário, ela permanece como norma de vida santa para o povo de Deus, escrita agora em corações regenerados pelo Espírito (Hb 8.10). 

É interessante notar que Josefo também descreveu outras seitas judaicas da época, tais como os saduceus e os essênios, a fim  de mostrar como cada grupo manipulava a Lei à sua maneira. Sobre os saduceus, ele afirma que rejeitaram a tradição oral, negaram a imortalidade da alma e a ressurreição (Antiguidades, XVIII, 1.4). Já os essênios, por sua vez, eram mais rigorosos, viviam em comunidades e se afastavam do Templo, julgando-se os verdadeiros puros (Guerra dos Judeus, II, 8.2-13). Essas referências históricas confirmam que o contexto em que Cristo viveu estava saturado de interpretações parciais e equivocadas da Lei, todas distantes do espírito da revelação divina.

Assim, os fariseus de ontem e os de hoje se encontram no mesmo ponto: desfiguram a Lei do Senhor. Uns reduziram a um sistema civil e cerimonial; outros, a aboliram completamente sob o pretexto da graça. Mas a Escritura é clara: a graça não anula a Lei, antes ela a confirma (Rm 3.31). Os verdadeiros discípulos de Cristo compreendem que a Lei não é um caminho de salvação, mas a estrada que revela o caráter de Deus, expõe nossa miséria e nos impele a correr para Cristo, Aquele que cumpriu perfeitamente toda a justiça e nos capacita a andar em novidade de vida. É o Espírito transformando a letra que mata em um meio de santificação 

Portanto, quem são os fariseus de hoje? São todos aqueles que, ainda que sob o nome de cristãos, repetem a mesma iniquidade dos antigos: usam mal a Lei, ou para se justificarem em obras externas, ou para anularem sua validade interna para santificação. Mas os que realmente conhecem a Deus percebem que a Lei e o Evangelho não são inimigos, mas companheiros inseparáveis: a Lei revela a necessidade da graça, e a graça nos capacita a obedecer à Lei com amor e alegria.

Eis porque Paulo declara: "Invalidamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei" (Rm 3.31). A fé não cancela a Lei, mas a coloca em seu devido lugar, apontando para Cristo e capacitando o crente a viver em conformidade com ela. Tiago, por sua vez, adverte contra uma fé morta, sem obras: “Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma... Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou,” (Tg 2.17, 22). A verdadeira fé é viva, e com razão por isso se expressa em conformidade com a Lei. Dessa forma, o testemunho apostólico confirma que Lei e fé não são rivais, mas duas faces de uma mesma realidade: a santidade de Deus sendo refletida na vida dos que foram salvos por sua graça.


OS DESIGREJADOS E SEUS VÍNCULOS COM SEITAS ANTIGAS

Introdução

Ao longo da história da igreja, diversos movimentos surgiram desafiando a fé cristã bíblica e distorcendo o evangelho de Cristo. Entre eles, destacam-se o gnosticismo e o antinomianismo, duas heresias dos primeiros séculos que, embora diferentes, tinham em comum a tentativa de reinterpretar a obra de Cristo de forma não correspondente às Escrituras. O gnosticismo oferece uma espiritualidade elitista e secreta, baseada em conhecimento oculto; o antinomianismo, por sua vez, abusou da graça para rejeitar a obediência às ordens de Deus.

Nos dias atuais, ainda que sob novas roupas, muitos desses elementos se repetem nos movimentos modernos, como o dos “desigrejados”, que afirmam não necessitar da comunidade cristã visível para viver a fé. Essa postura, quando elevada a princípio teológico, reflete tanto a ênfase gnóstica em uma espiritualidade individualizada quanto a orientação antinomiana de desprezar a autoridade e a disciplina do corpo de Cristo.

Assim, compreender o passado não é mero exercício histórico: é também uma forma de discernir os desafios presentes e reafirmar a centralidade do evangelho apostólico para a vida cristã.

1. Quem eram os gnósticos?

O gnosticismo foi um conjunto de movimentos religiosos e filosóficos dos séculos I a III dC, que misturava elementos do cristianismo, do platonismo e das religiões orientais.

O vem termo do grego gnosis (“conhecimento”), porque os gnósticos acreditavam que a salvação vinha através de um conhecimento secreto, oculto e revelado apenas a alguns iluminados, e não pela fé em Cristo e Sua obra redentora.

Suas características principais eram:

• Dualismo radical: O mundo espiritual era visto como bom e puro, enquanto o mundo material era considerado mau, fruto de um deus inferior (o demiurgo).

• Cristo como revelador secreto: Para os gnósticos, Jesus não veio morrer pelos pecados, mas revelou esse conhecimento místico que libertaria a alma da prisão do corpo.

• Salvação elitista: Apenas aqueles que obtiveram uma gnose puderam ser salvos. Isso criou uma divisão entre os “espirituais” (verdadeiramente iluminados) e os “psíquicos” ou “materiais” (que nunca alcançariam a plenitude).

• Negação da encarnação (docetismo): Muitos gnósticos ensinavam que Cristo não teve corpo real, apenas parecia humano, porque seria impossível um ser divino puro se unir à matéria considerada má.

Exemplos práticos

Imagine um cristão gnóstico do século II:

Ele lê o Evangelho de João, mas entende que “a luz que veio ao mundo” não significa a encarnação do Filho de Deus para perdoar pecados, mas uma “energia espiritual” que liberta do corpo. Assim, em vez de confiar na cruz e ascender, ele se dedicaria a rituais e conhecimentos secretos para “despertar” e retornar ao mundo espiritual.

2. Quem eram os antinomianos?

O antinomianismo (do grego anti = contra + nomos = lei) foi (e ainda é) uma heresia que rejeita a necessidade da lei moral de Deus para a vida cristã.

Para o antinomiano, como a salvação é pela graça e não pelas obras, então os mandamentos de Deus não precisam ser obedecidos.

Suas características principais

• Mau uso da graça: Transformamos a graça de Deus em desculpa para viver no pecado (Judas 1:4).

• Rejeição da santidade: Afirmavam que o cristão já está livre da lei, então não há problema em cometer imoralidades.

• Separação entre fé e vida: Diziam que desde que a alma estava salva, o corpo poderia viver como quisesse.

• Distorção paulina: Baseiam-se em má interpretação de textos como Romanos 6:14 (“não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça”), esquecendo que Paulo imediatamente pergunta: “Havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça? De modo nenhum!” (Rm 6:15).

Exemplo prático

Imagine um antinomiano no tempo dos apóstolos:

Ele ouvia Paulo prega que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5:20). Ao entender que a graça liberta do poder do pecado, ele usava isso como justificativa para continuar em adultério, bebedeira ou idolatria, dizendo: “Não importa, já estou salvo pela graça, a lei não se aplica mais a mim”.

Diferença clara entre os dois

• O gnóstico procurava uma salvação elitista por meio do conhecimento secreto, muitas vezes negando a encarnação de Cristo e desprezando o evangelho simples da cruz.

• O antinomiano abusou da graça, transformando-a em desculpa para rejeitar a lei moral de Deus e viver em pecado.

Resumo bíblico:

• Contra os gnósticos: João insiste que “o Verbo se fez carne” (Jo 1:14; 1Jo 4:2–3).

• Contra os antinomianos: Paulo afirma: “A graça de Deus… nos ensina a renunciar à impiedade e às paixões mundanas” (Tito 2:11–12).

OS DESIGREJADOS E SUA RELAÇÃO COM O GNOSTICISMO E ANTINOMIANISMO

Os desigrejados modernos e suas conexões com o gnosticismo e o antinomianismo

1. Elementos gnósticos nos desejados

• movimento dos “desigrejados”, cristãos que rejeitam a participação formal em compras locais, muitas vezes adota uma visão semelhante ao gnosticismo em certos aspectos:

• Espiritualidade individualizada: Assim como os gnósticos buscavam uma experiência secreta, pessoal e interior, muitos desigrejados dizem que não precisam da comunidade visível, pois têm “um relacionamento direto com Deus”.

• Desprezo por estruturas visíveis: Os gnósticos viam o mundo material como inferior; hoje, alguns desigrejados desprezam qualquer organização eclesiástica, tratando-a como corrupta, mundana ou irrelevante.

• “Revelação especial”: Há uma tendência em enfatizar a experiência subjetiva (“Deus fala diretamente comigo”) em detrimento da pregação pública e dos sacramentos, como se houvesse uma espiritualidade mais “pura” para a igreja institucional.

1. Elementos antinomianos nos desejados

Também é possível identificar traços de antinomianismo:

• Rejeição da autoridade espiritual: Se não há liderança pastoral ou disciplina comunitária, cada um se torna sua própria autoridade, ou que abre espaço para cumprimento da obediência às ordenanças bíblicas.

• Redefinição da santidade: Alguns desigrejados afirmam que “Deus vê o coração” e, portanto, não é necessário viver em conformidade com os padrões claros de vida cristã.

• Desconexão da ética bíblica: Sem um corpo comunitário que exorte e corrija, a fé tende a ser vívida de forma relativista, às vezes reduzida a sentimentos, sem compromisso ético prático.

2. Diferença essencial

É importante dizer: nem todo desigrejado é gnóstico ou antinomiano. Muitas pessoas são feridas por abusos de líderes, escândalos, ou experiências negativas na igreja. Contudo, quando o movimento se torna uma teologia do “não preciso da igreja”, ele necessariamente absorve características semelhantes às antigas heresias.

3. Exemplos práticos

Um desigrejado pode dizer: "Não preciso de pastor, nem de congregação. O Espírito Santo me guia diretamente, e só eu entendo a Bíblia para mim mesmo" → isso ecoa o elitismo gnóstico.

Outro pode afirmar: "Não importa se eu vivo em pecado, Deus olha o coração. A graça cobre tudo, e a igreja não pode me julgar" → isso repete o espírito antinomiano.

 A resposta bíblica é equilibrada:

Contra o gnosticismo moderno, Paulo ensina que a fé vem pelo ouvir a pregação (Rm 10:17) e que Deus distribuiu mestres e pastores para edificação (Ef 4:11–12).

Contra o antinomianismo moderno, ele declara que a graça nos ensina a viver em santidade (Tt 2:11-12).

 Resumindo: o movimento dos desigrejados, quando se torna uma ideologia, realmente junta a autoespiritualidade gnóstica (salvação sem comunidade) com a excluída da lei e da disciplina cristã antinomiana.


Conclusão

Uma análise do gnosticismo e do antinomianismo mostra que, desde os primórdios, a igreja desviou-se que tentou fragmentar a fé cristã. Enquanto os gnósticos buscavam uma salvação elitista por meio de um conhecimento secreto, os antinomianos transformavam a graça em licença para viver em pecado. Ambos, de maneiras distintas, negaram a suficiência da obra de Cristo e a aceitação prática à Palavra de Deus.

Nos dias atuais, o movimento dos desigrejados, ainda que diferente em seu contexto histórico, reproduz traços dessas mesmas heresias: ora exaltando uma espiritualidade individualizada que dispensa a comunidade, ora relativizando os mandamentos divinos sob o pretexto da graça. Tal postura, além de fragilizar a vida de fé, ignora a realidade de que Cristo não chamou apenas indivíduos, mas um povo, um corpo, para viver unido em amor, disciplina e edificação mútua.

Assim, olhar para os erros do passado é essencial para que a igreja de hoje não os repita. O evangelho bíblico continua sendo a resposta: uma fé enraizada em Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, que salva pela graça, transforma pela santidade e congrega em um só corpo todos aqueles que foram chamados para a vida eterna.



O FIO DE OURO DA SANTIFICAÇÃO: Da Antiga à Nova Aliança.

    A expressão popular “fio de ouro” remete a uma linha lógica entre pontos, aparentemente separados, mas que, de fato, estão conectados entre si. E, quando colocamos o título desse texto como sendo “O FIO DE OURO DA SANTIFICAÇÃO”, nossa proposta quanto ao cerne do texto é clara. Trata-se de mostrar a linha de pensamento dos autores bíblicos sobre o que significa, de onde vem e para onde vai o ensino da Palavra sobre a doutrina da “santificação”.

    Assim como todos os outros temas e doutrinas, a Escritura possui um fio de ouro que conecta todos os textos pertinentes ao mesmo assunto. Sem analisar todo o contexto bíblico sobre o tema, é analisá-lo sobre um fundamento desequilibrado, incompleto que, por fim, pode tornar a conclusão em heresia, ao invés de uma doutrina bíblica.

    Essa continuidade entre Antigo e Novo Testamento não deve ser vista como simples linha divisória, mas como um fluxo contínuo de revelação divina, no qual a plenitude da verdade em Cristo encontra suas raízes e fundamentos nas Escrituras veterotestamentárias. A doutrina, portanto, não é mera abstração ou construção teórica; é o ensino sólido e prático da Palavra que orienta a vida do crente, fornecendo princípios claros para conduta, adoração e santificação. É exatamente nesse sentido que a análise cuidadosa de todo o contexto bíblico se torna indispensável: compreender o AT à luz do NT, e vice-versa, nos permite estabelecer fundamentos doutrinários que refletem a coerência, a suficiência e a aplicação prática da revelação de Deus em todas as eras.

    Para nós cristãos que vivemos após a ressurreição de Cristo, não podemos olhar textos isoladamente do Antigo Testamento, isso configura uma quebra na própria perspectiva de Cristo e dos apóstolos quanto à inteireza, suficiência e inerrância da Escritura, como diz Paulo: “Toda Escritura é inspirada...” e não apenas o AT, ou apenas os versículos que me são convenientes aos meus anseios. E toda ela é “...útil para o ensino, para repreensão, para educação na justiça, a fim de que o homem seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.

    Desta maneira o fio precisa ser coerente com a Teologia Bíblica presente tanto no AT, quanto no NT, salvaguardando-nos das diferenças com o aprimoramento da Aliança afirmado por Cristo quando disse: “Este cálice é o sangue da Nova Aliança”. Comecemos por aqui.

    A “Nova Aliança” nunca se tratou de uma afirmação que a Antiga deixou de existir. Mas que a Nova foi construída pela base, pela essência da Antiga. O termo grego para a palavra “Nova” é claro em seu sentido. “Nova” é καινος (kainos) que não define como algo novo, no sentido de inédito, nunca visto antes. Mas o sentido é de algo já conhecido, mas agora apresentado sob nova forma.

    Então a Nova Aliança em Cristo não se trata de um extermínio total da Antiga Aliança, mas que essa foi construída nas bases da Antiga. Na prática isso é apontado em vários textos vistos no Novo Testamento. Tanto de palavras proferidas por Cristo, quanto pelos apóstolos.

    E, quando falamos de doutrinas, qualquer que seja, oriundas do Novo Testamento, elas possuem seu fundamento no AT, mesmo que elas não possuam a mesma forma nas quais eram executadas naquele tempo antigo.

    A doutrina da santificação não foge à regra e por isso iremos partir da santificação vista no NT indo em direção ao Antigo para encontrar seu fundamento. Muitas das vezes a conexão, o fio de ouro, das doutrinas é direto com o AT em determinados textos, outros casos não.  

    Antes de trazermos um versículo que aplique e nos mostre o sentido de Santo e de Santificação vamos trabalhar um pouco a partir das línguas originais.

No Antigo Testamento

A palavra principal é קָדוֹשׁ (qādôš), da raiz קדש (qāḏash), que significa “separar, consagrar”. O sentido primário é algo ou alguém colocado à parte para Deus, distinto do comum ou profano.

Alguns exemplos:

·        Deus é santo por ser absolutamente distinto e separado do pecado (Is 6.3: “Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos”).

·        Objetos e lugares são santos quando separados para uso exclusivo no culto (Êx 29.37).

·        O povo é chamado de santo porque foi separado por Deus dentre as nações (Lv 20.26).

 

    Portanto, no AT, “santo” significa separado para Deus, distinto do uso comum e refletindo a pureza do próprio Deus.

 

No Novo Testamento

 

    A palavra central, a mais usada no grego, é ἅγιος (hágios), que herda a ideia do hebraico qādôš; cujo sentido primário é consagrado, distinto, dedicado a Deus.

Algumas aplicações no NT:

·        Deus: Ele é o Santo por excelência (Jo 17.11; 1 Pe 1.16).

·        Cristo: chamado de “o Santo de Deus” (Mc 1.24; At 3.14).

·        Crentes: não apenas como “separados” (posicionalmente em Cristo), mas também chamados a viver de modo puro e irrepreensível (Ef 1.4; 1 Ts 4.7).

 

    Assim, no NT, hágios mantém a ideia veterotestamentária de separação para Deus, mas ganha um sentido mais pleno: participação na vida de Deus por meio de Cristo e transformação prática pelo Espírito. E vejamos como Deus trata essa questão do “ser santo”, “santidade” e “santificação” mostrando o fio de ouro a partir no NT.

    Mas afinal o que é ser santo e o que é o processo de santificação? Pedro é direto na definição. “...pelo contrário, assim como é santo aquele que os chamou, sejam santos vocês também em tudo o que fizerem; porque está escrito: Sede santos, porque eu sou santo.” (1 Pedro 1.15-16).

    Aqui, o Novo Testamento define santidade como refletir o caráter de Deus em toda a conduta. Não é apenas posição (separados em Cristo), mas prática; é viver a vida conforme a santidade de Deus. Pode se questionar a impossibilidade para qualquer homem, sim, podemos; mas isso não implica em ser uma impossibilidade real. Falaremos sobre isso na conclusão.

Outros textos nos ajudam a aprofundar um pouco mais nessa definição.

 

1.       Separação em Cristo: “à igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados para serem santos...” (1 Coríntios 1.2). Aqui a santidade é identidade: em Cristo, o crente já é separado para Deus.

 

2.       Transformação moral e prática vista em Efésios 1.4: “assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele em amor.” Santidade, então, é viver de modo coerente com o propósito eterno de Deus.

 

3.       Separação do pecado vista em 2 Coríntios 7.1: “purifiquemo-nos de toda impureza da carne e do espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus.” Esse texto nos mostra a santidade como sendo um processo: afastar-se da impureza e crescer no temor do Senhor. Esse processo é que se define por santificação.

 

    Paulo apresenta em Romanos o mesmo que em sua carta aos Coríntios, mas o faz com palavras diferentes, mas preservando o mesmo sentido. Ele apresenta a santificação como um processo, e a santidade como sendo o estado  de consagração do corpo e da vida: “...apresentem o corpo de vocês como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus...” (Romanos 12.1).  Santidade se expressa em entregar toda a vida como culto a Deus.

    Já em 1 Tessalonicenses 4.3, lemos: “pois esta é a vontade de Deus: a santificação de vocês, que se abstenham da imoralidade sexual.” Aqui fica claro que santidade não é conceito abstrato, mas prática concreta quando Paulo usou a questão do comportamento sexual como exemplo.

    Desta maneira, voltemos mais uma vez ao texto de Pedro. “...pelo contrário, segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso procedimento, porque escrito está: Sede santos, porque eu sou santo.” (1 Pedro 1:15-16). Esse texto nos aponta diretamente para uma direção clara. Ele diz: “Está escrito”. Essa direção dada por Pedro mostra tanto o motivo quanto a fonte pela qual devemos ser “santos”. Pedro não está trazendo um novo ensino, numa Nova Aliança. Pedro está nos dando a base, o fundamento da Nova Aliança, que nos capacita a sermos santos como Deus “...em todo nosso procedimento.” E esta base para santificação na Nova Aliança não está no Novo Testamento.

    A fala de Pedro é uma citação direta de três versículos do AT.

Levítico 11:44-45  “Eu sou o SENHOR, vosso Deus; portanto, vós vos consagrareis e sereis santos, porque eu sou santo; e não vos contaminareis por nenhum enxame de criaturas que se arrastam sobre a terra. Eu sou o SENHOR, que vos faço subir da terra do Egito, para que eu seja vosso Deus; portanto, vós sereis santos, porque eu sou santo.

Levítico 19:2 Fala a toda a congregação dos filhos de Israel e dize-lhes: Santos sereis, porque eu, o SENHOR, vosso Deus, sou santo.

    No contexto desse último versículo, Deus fundamenta o ordenamento para que seu povo seja santo, por que Ele é santo. Mas Deus não deixou seu povo sem orientação de como eles poderiam fazer tal coisa. É importante lembrar nesse ponto que a santificação ocorre como um processo depois de um ato único e pontual na vida do crente que é a justificação. Essa ato jurídico da parte de Deus retira do ímpio todo o peso que o tornava culpado perante a Lei de Deus.

    Certamente não estamos falando da Lei com respeito aos sacrifícios e rituais, mas da Lei que aponta, define o que é pecado, define aqueles atos imorais, próprios do homem, desde a queda e são consequência da corrupção interna do coração e da herança espiritual genética passada a todos os homens.

    Por isso Deus mostrou que para ser santo como Ele, aqueles justificados, poderiam cumprir a Lei como resposta de amor Àquele que retirou de sobre eles, seus escolhidos, a culpa que os colocaria no inferno. Como eles, poderiam fazer isso? Para visualizarmos facilmente o contexto de Levítico, Êxodo e o texto de Pedro, passo a seguinte tabela comparativa.

Tabela comparativa – Levítico 19, Êxodo 20 e 1 Pedro 1.16

Êxodo 20 – Os Dez Mandamentos

Levítico 19.3-34 – Aplicações práticas dos Dez Mandamentos

1 Pedro 1.16 – Santidade em Cristo

1º – Não terás outros deuses (20.3)

“Não vos vireis para os ídolos” (19.4)

Santidade = exclusividade a Deus.

2º – Não farás imagens (20.4)

“Não vos fareis deuses de fundição” (19.4)

Separação da idolatria, consagração a Cristo.

3º – Não tomarás o nome em vão (20.7)

“Não jurareis falso pelo meu nome” (19.12)

Santidade inclui reverência na palavra.

4º – Lembra-te do sábado (20.8-11)

“Guardareis os meus sábados” (19.3, 30)

Santidade no tempo consagrado a Deus.

5º – Honra pai e mãe (20.12)

“Cada um respeitará a sua mãe e o seu pai” (19.3)

Santidade no lar, expressão de amor obediente.

6º – Não matarás (20.13)

“Não atentarás contra a vida do teu próximo” (19.16)

Santidade preserva a vida e promove amor.

7º – Não adulterarás (20.14)

“Não contaminarás a tua filha... não prostituirás” (19.29)

Santidade na pureza sexual.

8º – Não furtarás (20.15)

“Não furtareis, nem oprimireis” (19.11,13)

Santidade no trato justo com o próximo.

9º – Não dirás falso testemunho (20.16)

“Não mentireis... nem mexeriqueiro” (19.11,16)

Santidade no falar íntegro.

10º – Não cobiçarás (20.17)

“Não te vingarás, nem guardarás ira... amarás o teu próximo como a ti mesmo” (19.18)

Santidade no coração, vencendo cobiça e ódio.

Princípio de adoração

Sacrifícios santos, ofertas corretas, justiça social, amor ao estrangeiro, cuidado com pobres e vulneráveis (19.5-10, 32-34)

Santidade prática que reflete o caráter de Deus.

 

    Levítico 19 mostra que a santidade não é uma abstração, mas a vida inteira orientada pela Lei do Senhor. Os Dez Mandamentos são o fundamento; Levítico traz aplicações concretas no dia a dia: família, trabalho, justiça, misericórdia, culto. Pedro, ao citar “sede santos, porque eu sou santo” (1Pe 1.16), relembra que a santidade não é apenas separação ritual, mas adoração amorosa àquele que nos justificou em Cristo.

    Ser santo, portanto, é amar a Deus de forma exclusiva (primeiros mandamentos) e amar ao próximo de modo justo e compassivo (últimos mandamentos). A Lei não é peso, mas expressão de gratidão e culto; é resposta daqueles que foram libertos pela graça. No AT, a santidade moldava o povo redimido do Egito; no NT, molda a Igreja redimida pelo sangue de Cristo.

    Ao lermos a Lei de Deus, especialmente em livros como Êxodo, Levítico e Deuteronômio, percebemos que os mandamentos dados ao povo de Israel aparecem de forma entrelaçada: normas sobre o culto, orientações sociais e princípios morais caminham lado a lado. A Escritura não faz uma divisão formal entre “lei cerimonial, civil e moral”. Essa categorização, portanto, não é encontrada nos próprios textos bíblicos.

    No entanto, a distinção entre esses aspectos é clara quando observamos a natureza de cada mandamento. Alguns regulavam o culto e os ritos sacrificiais (leis cerimoniais), outros tratavam da ordem comunitária de Israel como nação (leis civis), e outros expressavam a vontade, a essência moral de Deus, a partir de princípios válidos para todos os tempos (leis morais/espirituais).

    Os termos técnicos que usamos hoje. “cerimonial, civil e moral”, foram adotados por teólogos ao longo da história para facilitar a compreensão e a organização didática da Lei, sem criar categorias artificiais, mas simplesmente reconhecendo diferenças que já estão descritas na própria Palavra. Essa classificação ajuda a visualizar como a Lei apontava para Cristo em seu aspecto cerimonial, regulava a justiça em seu aspecto civil, e permanece como norma de vida em seu aspecto moral.

    Dessa forma, ao observarmos a Lei, conseguimos identificar seus diferentes aspectos sem fragmentá-la, mas reconhecendo sua riqueza e profundidade. O quadro a seguir apresenta exemplos de leis cerimoniais, civis e morais/espirituais, de modo a ilustrar como esses três aspectos aparecem na Escritura. Essa distinção nos ajuda a perceber a unidade da Lei e, ao mesmo tempo, sua diversidade de aplicações: tudo aponta para a santidade de Deus e para a vida de adoração e amor que Ele requer do Seu povo.

Quadro comparativo das Leis

Leis Cerimoniais (culto e ritos)

Leis Civis (vida social e justiça)

Leis Morais/Espirituais (princípios permanentes)

1. Sacrifício pacífico oferecido de modo correto (Lv 19.5-8).

1. Não reter o salário do jornaleiro até pela manhã (Lv 19.13).

1. Honrar pai e mãe (Lv 19.3; Êx 20.12).

2. Guardar os sábados como sinal da aliança (Lv 19.3, 30).

2. Deixar rebuscos da colheita para o pobre e estrangeiro (Lv 19.9-10).

2. Não ter outros deuses diante de Deus (Êx 20.3).

3. Reverenciar o santuário (Lv 19.30).

3. Não oprimir o estrangeiro (Lv 19.33-34).

3. Não fazer imagens ou ídolos (Lv 19.4; Êx 20.4).

4. Comer frutos da árvore só no tempo certo (Lv 19.23-25).

4. Julgar com justiça, sem favorecer rico ou pobre (Lv 19.15).

4. Não tomar o nome de Deus em vão (Lv 19.12; Êx 20.7).

5. Proibição de comer sangue (Lv 19.26).

5. Respeitar os idosos (Lv 19.32).

5. Amar o próximo como a si mesmo (Lv 19.18).

6. Proibição de práticas adivinhatórias (Lv 19.26, 31).

6. Não amaldiçoar o surdo ou pôr tropeço diante do cego (Lv 19.14).

6. Não furtar (Lv 19.11; Êx 20.15).

7. Não cortar o cabelo em formato ritualístico (Lv 19.27).

7. Proibição de vingar-se ou guardar ódio (Lv 19.18).

7. Não adulterar (Lv 19.29; Êx 20.14).

8. Não ferir o corpo por causa dos mortos (Lv 19.28).

8. Não andar como mexeriqueiro entre o povo (Lv 19.16).

8. Não matar (Lv 19.16; Êx 20.13).

9. Ofertas santas do fruto da terra (Lv 19.24).

9. Proibição de injustiça nos pesos e medidas (Lv 19.35-36).

9. Não levantar falso testemunho (Lv 19.11,16; Êx 20.16).

10. Animais não cruzarem com espécies diversas (Lv 19.19) – símbolo de separação.

10. Regular relações sociais e servos (Lv 19.20-22).

10. Não cobiçar (Êx 20.17; aplicado em Lv 19.18 pela proibição da vingança e ira).

 

    Dessa forma, vemos que a distinção entre os aspectos civil, cerimonial e moral da Lei nos auxilia a compreender a continuidade e a descontinuidade da revelação divina. As dimensões civis e cerimoniais foram dadas especificamente a Israel, como povo da aliança, delimitando sua vida social e seu culto tipológico. Cristo, ao cumprir perfeitamente a Lei, aboliu em sua carne os mandamentos que faziam separação ritual (Ef 2.14-15), encerrando os sacrifícios e cerimônias que apontavam para sua obra consumada. Do mesmo modo, a legislação civil tinha sua aplicação no contexto teocrático da nação israelita, e não se estende como obrigação direta à Igreja.

    Entretanto, a Lei moral permanece inalterada, porque não se fundamenta em símbolos temporários ou em arranjos políticos transitórios, mas no próprio caráter de Deus, que é imutável. O chamado à santidade: “sede santos, porque eu sou santo” (Lv 19.2; 1Pe 1.16) é a essência da vida do povo de Deus em todas as eras. Por isso, ainda que os rituais e as normas civis tenham cumprido seu papel pedagógico e cessado em Cristo, a exigência da santificação jamais caduca. O Espírito Santo, dado à Igreja, não elimina a Lei, mas a escreve no coração (Jr 31.33; Hb 8.10), capacitando-nos a obedecer não como servos temerosos, mas como filhos agradecidos.

    Assim, enquanto a obra de Cristo nos dispensa das sombras e ordenanças próprias do culto judaico e da vida civil de Israel, ela intensifica o peso e a beleza da santidade moral. Não se trata de legalismo, mas de amor obediente àquele que nos justificou. A Lei moral, longe de ser anulada, é iluminada e aprofundada na Nova Aliança (nova forma), de modo que todo aquele que foi salvo pela graça é também chamado a viver em santificação; não para alcançar a salvação, mas como fruto inevitável da verdadeira redenção.

 

Conclusão.

    Ao examinarmos a revelação de Deus, percebemos que a santificação não é um conceito abstrato ou uma lista de obrigações, mas o fio de ouro que atravessa toda a Escritura, conectando o Antigo e o Novo Testamento em uma única linha de propósito divino. No Sinai, Deus deu a Lei a Israel não apenas como um conjunto de mandamentos, mas como instrumento pedagógico para imprimir no coração do povo um temor reverente. Como Moisés declara em Êxodo 20:20, Deus veio “para vos provar, e para que o seu temor esteja diante de vós, a fim de que não pequeis.” Esse temor é a raiz da santidade: é o reconhecimento da santidade de Deus que afasta do pecado e orienta a vida em obediência.

    Com a obra consumada de Cristo, a santidade ganha uma dimensão ainda mais profunda. Na oração sacerdotal de João 17:17, Ele suplica: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” Aqui, a santificação não se limita a evitar o pecado, mas envolve a transformação do coração e da conduta pelo poder da Palavra de Deus e a ação do Espírito Santo. O temor reverente do AT se transforma, no NT, em obediência amorosa, participação na vida de Deus e conformidade com seu caráter.

    Portanto, a santificação é simultaneamente posição e processo: posição, porque em Cristo já somos separados para Deus; processo, porque o Espírito nos molda, dia a dia, à imagem do nosso Salvador. Os Dez Mandamentos, aplicados concretamente na vida diária em Levítico 19 e revisitados no NT, não são meros preceitos legais, mas expressão do amor de Deus que nos justifica e nos capacita. Honrar a Deus, amar o próximo, viver com justiça, pureza e integridade, tudo isso é resposta natural de quem foi liberto pela graça e chamado à santidade.

    Assim, desde o Sinai até a cruz, desde Êxodo 20 até João 17, percebemos que Cristo cumpriu plenamente a Lei civil e cerimonial em nosso lugar, encerrando os sacrifícios, ritos e normas civis que estavam ligados à antiga aliança. Entretanto, a graça de Deus não nos exime da necessidade da santificação; pelo contrário, ela a torna possível e indispensável. Como Jesus afirma em João 17:17, somos santificados pela verdade, que em seus dias era uma referência direta e clara à Escritura do Antigo Testamento -  “...a tua Palavra é a verdade...”. Pedro confirma essa realidade em 1 Pedro 1:16, chamando os crentes à santidade: “Sede santos, porque eu sou santo.” Assim, a santificação não é apenas um ideal, mas o chamado prático e contínuo de Deus para aqueles que foram justificados, sendo separados e moldados pela Palavra que revela seu caráter santo.

    Viver em santidade não significa estar livre do pecado, assim como ser santo não equivale a ser perfeito. Ser santo refere-se a todos aqueles que buscam o ideal revelado em Cristo e em Deus: “Sede santos como Eu sou santo” e “...os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho...”. Os santos são aqueles que, dia após dia, lutam contra o pecado em suas vidas, guiados pela Palavra e pelo Espírito, crescendo continuamente na semelhança de Cristo.


Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14:15)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

QUANDO A ESQUERDA SE FAZ DE SANTUÁRIO: O Perigo da Autoridade Ignorada

    Desde os primórdios da igreja, a rebeldia interna sempre se manifestou de formas sutis e, por vezes, escancaradas. A Escritura, ao narrar a história do povo de Deus, já demonstra que aqueles inclinados à subversão e ao desvio do caminho ordenado por Deus não surgiram apenas como adversários externos, mas como perturbadores no próprio seio do povo escolhido. Moisés advertiu: “Não perverterás o juízo do estrangeiro, nem do órfão; nem tomarás em depósito o manto da viúva” (Dt 24:17), mostrando que a obediência a Deus e o temor santo não são apenas regras exteriores, mas defesa contra a corrupção interna, que sempre se aproveita da fragilidade do coração humano.

    A chamada “esquerda” dentro da igreja, entendida aqui como uma tendência de rebeldia contínua e de subversão às autoridades ordenadas por Deus, nunca foi novidade. Ainda no Antigo Testamento, vemos grupos que, embora professassem servir ao Senhor, introduziam práticas estranhas, questionavam a liderança legítima e distorciam os preceitos da aliança para satisfazer seus desejos. Profetas como Amós e Isaías denunciaram repetidamente os que “removem os limites antigos” (Am 7:17) e que “trazem o jugo desigual sobre o povo” (Is 10:1-2). Essa tendência, portanto, não é apenas uma questão política ou social, mas uma condição espiritual do coração humano inclinado à autonomia e à contestação.

    Nos tempos do Novo Testamento, o próprio Senhor advertiu contra aqueles que, embora se autodenominassem irmãos, “vendem a liberdade de Cristo por um jugo de servidão” (Gl 2:4-5) Paulo falava dos vários momentos em que Cristo há havia advertido. Jesus repreendeu os fariseus, que eram líderes e guardiões da Lei, pelo fato de elevarem suas tradições acima da Palavra de Deus e por desconsiderarem a autoridade legítima estabelecida, mostrando que o perigo de uma esquerda espiritual sempre habita dentro da própria comunidade de fé. Esta esquerda não se manifesta necessariamente em alianças políticas, mas compartilha com a esquerda secular a tendência à insubordinação, à rejeição de regras, à distorção de princípios e ao desejo de autonomia absoluta.

A história da igreja revela que, sempre que surgem grupos que se autodenominam “igreja”, mas rejeitam a disciplina, a autoridade e a tradição bíblica, a tendência é a proliferação de heresias, divisões e práticas estranhas. Entre essas manifestações, destacam-se:

·        Avessos à autoridade: recusam sujeição às Escrituras e aos líderes legítimos;

·        Extremismo que roça a anarquia: estabelecem regras próprias e modos de culto arbitrários;

·        Doutrinas e práticas não prescritas: misturam elementos de espiritualidade não revelada, gnose, libertinagem moral e carismas distorcidos;

·        Distinção da tradição histórica: rejeitam a liturgia, os sacramentos e a disciplina eclesiástica, criando novos rituais e fórmulas de fé.

    Este padrão não é novidade moderna. Já encontramos exemplos de movimentos gnósticos e antinomianos que corromperam a igreja primitiva, confundindo liberdade em Cristo com licenciosidade e minando a autoridade pastoral, reproduzindo a lógica da esquerda: autonomia, relativismo e desprezo pela Palavra.

    Ao longo da história, o padrão da esquerda espiritual manteve-se constante: grupos que, embora professassem fé, desrespeitavam a ordem de Deus, subvertiam a autoridade legítima e promoviam práticas contrárias à Escritura. Hoje, essa tendência se manifesta de maneira mais visível nos chamados “desigrejados”: indivíduos ou grupos que se autodenominam igreja, mas rejeitam qualquer forma de disciplina eclesiástica, liderança pastoral ou ensino fundamentado na Palavra. A gnose é a fonte de conhecimento para eles, dizem: “O Espírito é autoridade final”, como se eles fossem um grupo seleto de supercrentes que receberam uma “revelação” especial e querem envolver, a todo custo, a outros em suas mistificações.  Nada diferente do gnosticismo, ou do antinomianismo antigo, apenas receberam uma roupagem moderna.

Esses grupos reproduzem características históricas da esquerda:

·        Avessos à autoridade: recalcitram contra pastores, anciãos e líderes legítimos, reinterpretando a Escritura a seu modo, como fizeram os rebeldes da sinagoga de Corinto que “se levantavam e dividiam a igreja” (1 Co 1:11-13). Paulo, ciente desse tipo de subversão, adverte que “aquele que causa escândalo ao irmão, peca contra Cristo” (Rm 14:15), mostrando que a desordem interna é sempre uma afronta ao Senhor.

 

·        Extremismo que roça a anarquia: a busca por autonomia total leva à rejeição das estruturas da igreja e ao culto segundo critérios próprios. Assim como os coríntios introduziam práticas contrárias ao decoro e à ordem (1 Co 14:40), esses grupos inventam doutrinas e rituais, confundindo liberdade em Cristo com libertinagem espiritual.

 

·        Doutrinas e práticas não prescritas: misturam elementos de gnose, carismas distorcidos e interpretações pessoais da Escritura. Paulo denuncia os que “introduzem heresias estranhas” (Tt 1:10) e aqueles que se afastam da verdade do evangelho “para seguir fábulas” (2 Tm 4:4). Não há novidade aqui; a Escritura sempre advertiu contra aqueles que “transformam em dissolução a sã doutrina” (2 Tm 3:6-7).

 

·        A semelhança com movimentos políticos de esquerda: assim como certos movimentos sociais buscam subverter estruturas, promover igualitarismo absoluto e abolir autoridade, os desigrejados promovem a anarquia dentro da igreja, negando hierarquia eclesiástica e disciplina bíblica. O paralelismo é evidente: em ambos os casos, a raiz é a rejeição da ordem e da autoridade estabelecida, seja de Deus ou de homens, que representam a Sua vontade.

 

·        Autonomia e relativismo moral: aqueles que se autodenominam igreja sem sujeição à Palavra tendem a redefinir o certo e o errado conforme seu próprio entendimento. Paulo já advertia: “Todos se desviaram, juntamente se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um só” (Rm 3:12). A lei moral e a norma revelada são desprezadas, e a autoridade divina é relativizada.

 

    No Novo Testamento, Jesus apresenta o contraste: a verdadeira obediência é viver sob o senhorio de Deus, não segundo a vontade própria. “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer a um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro” (Mt 6:24). O desigrejado moderno, assim, escolhe servir a si mesmo, ao prazer ou à ideologia, ou ao ego, e não a Deus, reproduzindo o padrão dos rebeldes históricos.

    O Antigo Testamento já mostrava que a corrupção interna é mais perigosa que a ameaça externa. Nabucodonosor, por exemplo, submeteu Judá, mas o verdadeiro perigo eram os falsos profetas, sacerdotes negligentes e líderes rebeldes que promoviam idolatria e injustiça dentro do povo de Deus (Jr 5:31; Ez 22:26). Do mesmo modo, a esquerda espiritual atual no meio eclesiástico não se apresenta sempre de forma ostensiva; ela se infiltra, corrompe e desvia o rebanho com discursos sedutores, “com aparência de piedade, mas negando o poder dela” (2 Tm 3:5; Jo 17.17; 1 Pe 1.23, etc.).

    Portanto, o paralelo é claro: desde os rebeldes do Sinai até os desigrejados contemporâneos, a esquerda espiritual segue um padrão imutável: rejeição da autoridade, relativização da lei divina, promoção de práticas e doutrinas estranhas e autodenominação de igreja. A Escritura adverte que a vigilância é necessária: “Examinai tudo. Retende o bem” (1 Ts 5:21), e “não deis ocasião ao diabo” (Ef 4:27). A fidelidade à Palavra e à ordem estabelecida por Deus é o antídoto contra a infiltração da rebeldia interna, e só a adoração genuína, centrada em Cristo, mantém a igreja protegida.

    A Escritura não apenas identifica o problema, mas também orienta a resposta adequada. A primeira medida é a disciplina eclesiástica fundamentada na Palavra, para preservar a pureza do rebanho. Paulo deixa claro: “Se alguém não ouve a palavra deste, considerai-o como gentio e publicano” (Mt 18:17), indicando que a submissão à autoridade legítima e à doutrina bíblica é condição para a comunhão. A tolerância diante da subversão interna não é recomendada; permitir que os desigrejados distorçam a fé é abrir brecha para contaminação espiritual, tal como os falsos profetas corromperam Israel (Jr 23:1-2).

    A segunda medida é o ensino contínuo e sólido da Escritura. Não basta repreender os rebeldes; é necessário que a congregação inteira seja firmada na verdade: “Examinai tudo. Retende o bem” (1 Ts 5:21). A exegese histórico-gramatical, estudando a Palavra em seu contexto original, protege o povo de interpretações pessoais ou sedutoras, que caracterizam os movimentos gnósticos e antinomianos ao longo da história.

    A terceira medida é viver a adoração e o serviço em toda a vida. O Senhor advertiu: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6:24). A adoração não se limita ao culto formal, mas é expressão de submissão diária à vontade de Deus. Aqueles que amam a Cristo verdadeiramente não podem simultaneamente abraçar práticas contrárias à Sua Palavra. O serviço integral à Deus, tanto no culto comunitário quanto na vida cotidiana, fortalece a igreja contra a sedução da rebeldia.

    Por fim, a igreja deve cultivar vigilância espiritual e oração constante. Paulo exorta: “Vigiai, estai firmes na fé, portai-vos varonilmente, fortalecei-vos” (1 Co 16:13). A vigilância é preventiva e corretiva: preventiva, porque identifica e frustra infiltrações antes que se estabeleçam; corretiva, porque disciplina e restaura aqueles que se desviam. O modelo bíblico mostra que a fidelidade de líderes e do povo, enraizada na Palavra, é a garantia de preservação da igreja ao longo do tempo.

    A presença de esquerda espiritual na igreja não é fenômeno novo, mas padrão recorrente. Desde os rebeldes do Sinai, passando pelos falsos profetas, até os desigrejados contemporâneos, a ameaça é sempre a mesma: rejeição da autoridade, distorção da Lei, promoção de doutrinas e práticas estranhas, e autodenominação de igreja. A resposta bíblica, historicamente consistente, é disciplina, ensino sólido, adoração íntegra e vigilância constante.

    Assim, a igreja permanece protegida, não pela força humana ou por ideologias, mas pela obediência à Palavra e pela santidade de vida, que refletem a glória de Deus. O chamado é claro: resistir à rebeldia interna, guardar a verdade e viver a fé em Cristo com amor, temor e fidelidade, mantendo-se firme contra qualquer tentativa de subversão que se disfarce de espiritualidade.

SERVIÇO TOTAL: O AMOR QUE CUMPRE A LEI E A NÍTIDA REPETIÇÃO DOS DEZ MANDAMENTOS NO NT

    Quando  olhamos  para os Dez  Mandamentos à luz do  Novo Testamento,  percebemos  que  eles  não foram  anulados,  mas  reafirmados  em  sua essência  espiritual por Cristo  e pelos apóstolos.   O Senhor Jesus,  ao ser questionado  sobre qual  seria o maior  mandamento,  resumiu toda a Lei  em duas direções inseparáveis:  amar a  Deus de  todo o  coração,  alma  e  entendimento,  e amar  ao próximo  como  a  si mesmo  (Mt 22.37–40).  Nesse resumo,  Ele  não  apenas  cita  Deuteronômio 6.5,  mas  também  coloca o amor como a raiz de toda obediência.

   O apóstolo Paulo segue no mesmo caminho, afirmando que “o cumprimento da lei é o amor” (Rm 13.10), mostrando que cada mandamento, seja no dever para com Deus ou no dever para com o próximo, continua válido como expressão da vida cristã. O Novo Testamento, portanto, não repete a Lei apenas como letra, mas a apresenta como norma viva e permanente, gravada no coração dos redimidos pelo Espírito (Hb 8.10), e que não pode ser deixada de lado; pelo contrário, o Espírito presente na vida do verdadeiro crente a vivifica (2 Co 3.6). 

A ênfase de Hebreus é clara: Deus promete imprimir a Sua Lei na mente e no coração dos seus escolhidos, mostrando que a obediência não se resume a um conhecimento intelectual ou a uma observância mecânica. Trata-se de uma internalização profunda, onde o Espírito Santo transforma a compreensão e a prática da Lei, tornando-a um princípio vivo que orienta pensamentos, atitudes e decisões. Assim, a santificação cristã não é fruto de regras externas, mas do agir contínuo do Espírito, que faz com que a Palavra se torne guia efetiva da vida, promovendo obediência que flui do amor, do temor e da comunhão com Deus.

    É um equívoco afirmar que as palavras ensinadas por Cristo nos Evangelhos eram restritas ao período da Lei Mosaica e não tinham relevância para os ouvintes de sua própria época, ou mesmo posterior. Tal argumento descontextualiza o ensino de Cristo, ignorando que Ele veio para cumprir a Lei e os Profetas, revelando de forma plena a essência moral da Lei que, ao longo dos séculos, havia sido distorcida pelos líderes judaicos.

    Muitos judeus, acostumados a um entendimento legalista e meramente civil da Lei, ficaram indignados com suas palavras porque Cristo expôs que a verdadeira obediência não se limita a atos exteriores, mas envolve a intenção do coração. Suas falas não apenas orientavam seus contemporâneos, mas também estabeleciam fundamentos duradouros para a Igreja primitiva e continuam a nortear a prática e a doutrina da Igreja hodierna. Vamos comparar algumas passagens de Cristo em relação às tradições judaicas e o ensino perpetuado para a igreja de todos os tempos.

Falas de Cristo

Contexto Judaico / Ensino Distorcido

Resgate da Essência da Lei

Aplicação à Igreja Primitiva e Hodierna

“O Filho do Homem é Senhor do sábado” (Mt 12:8; Mc 2:28; Lc 6:5)

O sábado era entendido como obrigação estrita, com regras civis e penais; muitos líderes haviam perdido a dimensão moral e espiritual do descanso e da adoração.

Cristo resgata a finalidade do sábado: glorificação de Deus e cuidado com o homem; a essência é serviço a Deus, não observância legalista.

Igreja primitiva e hodierna entende que Cristo é Senhor do tempo e da adoração; culto e serviço se estendem a toda a vida. E, tanto Ele quanto os apóstolos adotaram o domingo para isso.

“Ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás’; mas eu vos digo: qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento” (Mt 5:21-22)

Lei entendida apenas como proibição física; não se valorizava a dimensão moral e relacional.

Cristo resgata o princípio do amor ao próximo, regulando atitudes e intenções internas, não apenas ações externas.

Igreja é chamada à reconciliação e à pureza de coração, cultivando amor ativo para com todos.

“Ouvistes o que foi dito: ‘Não adulterarás’; mas eu vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com desejo já adulterou em seu coração” (Mt 5:27-28)

Adultério restrito ao ato físico; desejos e intenções eram ignorados.

Cristo revela que santidade moral inclui coração e pensamento; a Lei visa transformar todo o ser.

Crentes devem buscar santidade interna e integridade moral, não apenas evitar atos externos.

“Não resistais ao perverso; mas qualquer que te ferir na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt 5:39)

Justiça entendida de forma retributiva (lex talionis); misericórdia e amor negligenciados.

Cristo resgata o princípio do amor e da reconciliação; justiça é instrumento de bem e não mera punição.

Igreja pratica amor radical, pacificação e misericórdia como testemunho da graça divina.

“Quem entre vós está sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra”

(Jo 8:7)

Lei aplicada rigidamente, sem considerar o coração ou a intenção; punição física prevalecia sobre misericórdia.

Cristo resgata a essência da Lei: justiça considera intenções, misericórdia e graça.

Igreja aplica misericórdia e disciplina com justiça, humildade e compaixão.

    O contexto de João 8:7 é crucial para compreender a aplicação correta do ensino de Cristo. Podemos analisar da seguinte forma:

 

    A passagem não se trata apenas de uma lição abstrata sobre misericórdia ou juízo, mas de um momento em que Cristo confronta uma situação de flagrante injustiça processual. Os judeus levaram a mulher adúltera diante dele, aparentemente buscando um motivo para acusá-lo de transgressão da Lei ou para manipular a situação em seu favor político. Entretanto, a Lei Mosaica já previa um procedimento rigoroso para a aplicação de punições por adultério (Dt 17:6; Lv 20:10):

 

·        Estabelecimento de tribunal: A execução da pena cabia a um juízo formal, e não a um grupo de indivíduos tomando a lei em suas mãos.

·        Audiência de testemunhas e argumentos: A lei exigia testemunhas e evidências claras para condenar alguém.

·        Igualdade de aplicação: O adultério envolvia tanto o homem quanto a mulher; a mulher estava sendo acusada isoladamente, violando o princípio de justiça equitativa.

·        Condições para flagrante:  Se a mulher foi pega em flagrante, o homem também deveria estar presente; sua ausência mostra que a acusação era seletiva e manipulada.

    Se Cristo tivesse cedido ao apelo dos judeus, Ele teria violado os princípios da Lei moral e civil, transformando a justiça em vingança e quebrando a integridade do ordenamento jurídico que Ele mesmo veio cumprir. Ao dizer “Quem entre vós está sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra”, Cristo não apenas defende a mulher, mas restaura a aplicação correta da Lei, lembrando que a punição deve ser justa, imparcial e proporcional.

 

A aplicação contemporânea desse texto é dupla:

 

·        Pessoal: Antes de julgar o próximo, devemos reconhecer nossa própria culpa e depender da misericórdia de Deus, evitando a hipocrisia de uma justiça seletiva.

·        Comunitária/igreja: A disciplina e o juízo dentro da comunidade cristã devem respeitar princípios de justiça, equidade e graça, sem se transformar em condenação precipitada ou vingativa.

    Em suma, Cristo demonstra que o cumprimento da Lei não se reduz à letra fria, mas à justiça equilibrada, guiada pelo amor e pelo temor de Deus, integrando obediência e misericórdia.

    Portanto, o episódio da mulher adúltera, bem como os outros citados na tabela, ilustram de forma prática que a Lei moral, longe de ser mera formalidade ou legislação civil, possui princípios universais de justiça, equidade e misericórdia que permanecem aplicáveis à comunidade de fé em todas as eras. Cristo, ao confrontar a hipocrisia dos acusadores e ao restaurar a correta aplicação da Lei, não apenas protege a inocente, mas reafirma o caráter eterno da Lei moral, resgatando sua essência e finalidade.

    Assim, vemos que a obediência à Lei não se limita ao cumprimento legalista ou à letra morta; ela orienta a vida do crente na santificação diária, guiando tanto o julgamento pessoal quanto o exercício da disciplina na igreja, sempre equilibrados pelo amor, pela graça e pelo temor de Deus sendo aplicados pelo Espírito Santo. Esta passagem confirma que os princípios ensinados por Cristo aos seus contemporâneos permanecem válidos para a igreja primitiva e hodierna, demonstrando a continuidade entre a revelação do Antigo Testamento e o cumprimento pleno da Lei em Cristo. Não perceber isso no NT é muita infantilidade e falta de conhecimento.

    Quando falamos de Paulo que "o cumprimento da lei é o amor", ele não trouxe nenhuma novidade na revelação. Ele refletiu o cerne daquilo que Cristo ensina em uma conhecida passagem, Jesus menciona, no próprio linguajar do texto: “DOIS GRANDES MANDAMENTOS”. Alguns entendem que, com estas palavras, Jesus não ratificou os Dez Mandamentos. Pois bem, vejamos o texto:

  "Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas." (Mateus 22:37-40)

    De forma clara, Jesus afirma que toda a Lei vem destes dois mandamentos. Ele diz: "TODA A LEI DEPENDE... DESSES DOIS MANDAMENTOS". O que Cristo fez aqui? Cristo faz um resumo, uma síntese de toda a Lei expressa nos Dez Mandamentos. Mas, embora Ele próprio seja o Messias, essa ideia já estava expressa na própria exposição dos Dez Mandamentos no AT.

    Antes de mostrar o texto da fala de Cristo no AT, vamos entender o motivo pelo qual Ele afirmou que TODA A LEI DEPENDE... DESSES DOIS MANDAMENTOS. Uma forma fácil de compreender essa questão é se perguntar: de que forma se pode amar a Deus acima de todas as coisas? A resposta é nos voltarmos aos Dez Mandamentos e observar a relação entre os DOIS GRANDES MANDAMENTOS e o motivo pelo qual TODA A LEI depende deles. Ao analisarmos do 5º ao 10º Mandamento, vemos claramente que são ações que mostram, na prática, como obedecer ao Grande Mandamento em relação ao próximo, nos mostrando como "...amar ao próximo como a ti mesmo...". Todos esses mandamentos dizem respeito à nossa relação com o próximo. Relativamente ao que Ele afirma sobre AMAR A DEUS ACIMA DE TODAS AS COISAS, apontam diretamente para a prática do 1º ao 4º Mandamento. Não enxergar isso não é apenas miopia espiritual; é falta de leitura, analfabetismo funcional que não consegue ir além da letra, ou, pior, desonestidade intelectual.

    Ainda assim, vamos desconsiderar esta prova nítida e olhar o contexto das palavras de Jesus. Estas palavras não foram originais Dele, mas repetições das palavras de Moisés. Então, vamos ao contexto do AT para ver onde as palavras de Moisés se encontram nos capítulos 5 e 6 de Deuteronômio.

    No capítulo 5, Moisés repete literalmente os Dez Mandamentos, sem exceção. Nos versículos 1 a 3, ele faz várias advertências acerca do cumprimento da Lei. Dentre as exortações, aponta que os Mandamentos foram dados a fim de que “...temas ao SENHOR, teu Deus, e guardes todos os seus estatutos e mandamentos que eu te ordeno, tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os dias da tua vida; e que teus dias sejam prolongados” (Deuteronômio 6:2), fazendo também apontamentos históricos sobre a entrega desses Mandamentos.

    Dos versículos 6 ao 20, Moisés LITERALMENTE repete cada um dos Dez Mandamentos, sem exceção. E, dos versículos 21 ao final do capítulo 5, ele faz outros apontamentos históricos das circunstâncias ocorridas no evento da entrega dos Dez Mandamentos e várias advertências sobre o não cumprimento e o cumprimento, com suas respectivas consequências. Lembrando aqui que, dentre os objetivos dos Dez Mandamentos, segundo as próprias palavras de Moisés, está o de que o povo de Deus aprendesse a “...temer ao Senhor”.

    Ao iniciar o capítulo 6, Moisés afirma que esses mesmos Mandamentos deveriam ser ensinados ao povo, apontando o “...temor ao Senhor...” (6.2) como sendo um dos objetivos. Ao chegar no versículo 5, encontramos exatamente a expressão usada por Jesus: “Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração” (Deuteronômio 6:5-6). Aqui não encontramos as palavras usadas por Cristo do Segundo Grande Mandamento em relação ao próximo, e o motivo é simples. João, em sua carta, afirma: “Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ora, temos, da parte dele, este mandamento: que aquele que ama a Deus ame também a seu irmão.” Necessariamente, João está afirmando que quem de fato ama a Deus (de todo o coração, alma e força – do Primeiro ao Quarto Mandamento) deve necessariamente “amar ao seu próximo como a si mesmo” (do Quinto ao Décimo Mandamento). A condição de amar ao próximo está inteiramente atrelada ao amor a Deus. Portanto, se não amo ao próximo (do 6º ao 10º), necessariamente provou que não amo a Deus (do 1º ao 4º).

    Jesus fez questão de mostrar essa decorrência do amor ao próximo em relação ao amor a Deus justamente pelo fato de os fariseus não levarem isso em consideração. A parábola do Bom Samaritano mostra isso claramente. Ao ouvirem que um samaritano cumpriu a Lei de Deus, se viram furiosos, pois não consideravam um samaritano digno de ouvir a Palavra de Deus, mas o desprezavam como “cães”, tamanho era o ódio que nutriam contra eles. Justamente foi um deles que questionou Jesus: “E um deles, intérprete da Lei, experimentando-o, lhe perguntou: Mestre, qual é o grande mandamento na Lei?” (Mateus 22:35-36). Observe que ele não pergunta: “Quais os Mandamentos?”, mas: “Qual o grande mandamento?”, mostrando seu desprezo pelo próximo e desinteresse pelos mandamentos relativos a ele.

    De igual modo, temos um exemplo inverso sobre alguém que guardava os mandamentos relativos ao próximo, mas se esquecia ou negligenciava os mandamentos relativos a Deus: o jovem rico que se aproximou de Cristo e lhe perguntou quais mandamentos deveria cumprir. Jesus lhe respondeu:

Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe. Replicou ele: Tudo isso tenho observado desde a minha juventude” (Lucas 18:20-21).

    Todos esses mandamentos citados por Jesus são relativos ao próximo (do Quinto ao Décimo Mandamento). Conhecendo o coração do jovem, Jesus lhe responde: “Uma coisa ainda te falta: vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-me. Mas, ouvindo ele estas palavras, ficou muito triste, porque era riquíssimo” (Lucas 18:22-23). Neste ponto, Jesus toca no problema daquele jovem. Apesar de ele se relacionar bem com o próximo, pelo menos aparentemente, tinha um problema apontado por Cristo: “E Jesus, vendo-o assim triste, disse: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!” (Lucas 18:24).

    O problema não está em ser rico ou pobre; nunca foi esta a questão. Nesse mesmo ensino, o evangelista registra um aspecto não mencionado por Lucas nesta passagem, mas que aparece em outro texto:

  • Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mateus 6:24).
  • Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Lucas 16:13).

 

    Tanto Mateus quanto Lucas apresentam versículos literalmente iguais, mas quero destacar a expressão “Ninguém pode servir a dois senhores”. “Servir” é δουλεύω (douleuō), que significa: ser escravo, servir, prestar serviço.

     O termo empregado por Cristo, douleuō, não é neutro nem meramente funcional. Ele carrega a ideia de sujeição total, de vida entregue ao senhorio de alguém. Não se trata apenas de uma atividade paralela, mas de um vínculo de identidade: quem serve, pertence. É por isso que, nas Escrituras, “servir” está intrinsecamente ligado ao ato de adorar.

    No Antigo Testamento, a linguagem da aliança já deixa isso claro. O preâmbulo dos Dez Mandamentos apresenta Deus como o Libertador: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20:2). Em seguida, o chamado é para não ter outros deuses diante d’Ele, não fabricar ídolos, não se prostrar diante deles, nem lhes servir. O vocabulário usado não distingue serviço secular de culto religioso: servir a outros deuses é idolatria; servir a Deus é adoração.

    A própria palavra “liturgia” (leitourgia), tão presente no contexto da adoração, significa literalmente “serviço público” ou “serviço prestado”. Ou seja, adorar é servir, e servir é adorar. Quando Jesus afirma que ninguém pode servir a dois senhores, Ele revela que toda a vida é litúrgica: ou a existência humana é um culto prestado a Deus, em obediência e dependência, ou se torna um culto às riquezas, ao eu, ao mundo.

    Portanto, “servir” não se limita a atos externos, mas é uma postura cultual diante do Senhor. O coração que serve a Deus o faz em amor, temor e reverência; o coração que serve às riquezas, ainda que inconscientemente, dobra-se diante delas em culto profano. O princípio revelado no Sinai ecoa no ensino de Cristo: só há um Senhor digno de nossa liturgia, e o nome d’Ele é o Senhor, nosso Deus.

    Esse “serviço” que Jesus destaca encontra sua moldura no decálogo, como já demonstrado, mas vamos ser mais claros. Os quatro primeiros mandamentos mostram, de modo específico, como o homem deve servir a Deus em sua adoração. O primeiro ordena exclusividade: “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20:3). Servir aqui é reconhecer apenas um Senhor, em aliança de fidelidade. O segundo proíbe imagens e ídolos (Êx 20:4-6): o serviço verdadeiro não é inventado pela imaginação humana, mas prestado conforme a vontade revelada de Deus. O terceiro manda honrar o nome do Senhor (Êx 20:7): o serviço é reverente, tratando a majestade divina com santidade. O quarto estabelece o sábado (Êx 20:8-11): o serviço não é apenas culto formal, mas também descanso em Deus, separação de tempo para Ele, reconhecimento de sua obra na criação e redenção. O destaque aqui não é o sábado em si, mas o princípio do descanso de um dia a cada seis trabalhados — tema para outro estudo.

    Nos seis mandamentos seguintes, o mesmo princípio de serviço se expande para a vida prática. Honrar pai e mãe (Êx 20:12), não matar, não adulterar, não furtar, não levantar falso testemunho e não cobiçar (Êx 20:13-17) são expressões concretas de uma liturgia vivida no cotidiano. O serviço prestado a Deus não fica restrito ao templo ou à assembleia; transborda em amor e justiça para com o próximo.

    Como visto, Moisés resume isso em Deuteronômio 6:5: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força.” Esse amor não é meramente afetivo, mas envolve obediência, dedicação e lealdade, termos que apontam para o mesmo caráter de serviço e culto. Logo depois, Moisés ordena que as palavras da Lei estejam no coração, sejam ensinadas aos filhos, faladas em casa e no caminho, atadas às mãos e escritas nos umbrais da casa (Dt 6:6-9). O “servir” não é episódico; é total, integral, abrangendo a vida toda como culto contínuo ao Senhor.

    O “servir” não é episódico; é total, integral, abrange a vida toda como culto contínuo ao Senhor. Mas é importante notar que, dentro desse culto permanente, Deus instituiu também um dia específico de culto comunitário, separado como solenidade diante d’Ele. A Escritura o chama de “santo dia de descanso” (Êx 20:10), “santa convocação” (Lv 23:3), “reunião solene” (Ne 8:18); no Novo Testamento, a linguagem é de “congregar” (Hb 10:25),  “reunidos” (At 20.7; 1 Co 11.18). Esse dia, no AT, era o sábado; no NT, a igreja se reúne no “dia do Senhor” (Ap 1:10), o primeiro dia da semana, em memória da ressurreição de Cristo e seguindo o exemplo de Cristo e dos apóstolos.

    Esse ajuntamento solene não se opõe ao culto diário, mas é sua culminância. A vida toda é liturgia, e o culto semanal é o momento em que a comunidade expressa, de forma corporativa e visível, a adoração que já pulsa no coração todos os dias. Sem a vida de serviço contínuo, a reunião se torna mero rito vazio; sem a reunião solene, a vida perde o ritmo sagrado que Deus estabeleceu. A ordem bíblica une ambas as dimensões: o culto semanal é o coroamento do serviço diário, e o serviço diário é preparação para o culto semanal.

    Assim, do Sinai até as palavras de Cristo, o fio é o mesmo: servir é adorar, e adorar é viver em aliança exclusiva com Deus, segundo Sua Palavra, com todo o coração e toda a vida. Desta maneira, o pecado do jovem rico era o desprezo dele pelos primeiros quatro Mandamentos.

    Cristo, ao resumir toda a Lei nos dois grandes mandamentos:  “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” não anulou a Lei moral expressa nos Dez Mandamentos, mas a reafirmou em sua essência. Ele próprio declara: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14:15). Guardar os mandamentos não é meio de salvação, mas resposta de amor à salvação já recebida.

    Nem o Novo Testamento, nem o Antigo apresentam a obediência como caminho para alcançar a vida eterna, mas como fruto de um coração transformado pela graça. A Graça já era conhecida e buscada no AT. Como Davi, mesmo vivendo debaixo da Lei, reconhecia isso: “Volta-te, SENHOR, e livra a minha alma; salva-me por tua graça” (Salmos 6:4). Davi já vislumbrava e criava na obra do Messias. Assim, o crente, liberto da condenação da Lei pela obra de Cristo, passa a enxergar nela não um fardo, mas a régua santa que mostra como viver para agradar ao Senhor. A obediência é, portanto, expressão de gratidão e culto, resultado do novo nascimento e da união com Cristo.

    Assim, o serviço a Deus, revelado nos Dez Mandamentos e reiterado por Jesus, é uma vida de adoração que se estende a todas as esferas: na relação com Deus (mandamentos 1–4) e com o próximo (mandamentos 5–10). Essa vida cultual tem seu ápice semanal no ajuntamento do povo de Deus, mas se mantém em cada gesto do cotidiano. A Lei não salva, mas conduz o salvo a viver em santidade; não gera a vida, mas regula a vida daqueles que já foram vivificados.

    Portanto, quem ama verdadeiramente a Cristo não despreza a Lei, mas nela vê o reflexo do caráter santo de Deus e a regra de gratidão pela graça recebida.