A doutrina do Sola Scriptura não é mero conceito abstrato ou argumento acadêmico. É a pedra angular sobre a qual a igreja reformada se sustenta, o alicerce firme que Cristo mesmo comparou à casa construída sobre a rocha: “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha” (Mt 7.24). Não se trata apenas de ouvir ou admirar a Palavra, mas de submeter-se a ela com obediência perseverante. Construir sobre a areia, reinterpretando a Escritura segundo experiências subjetivas, opiniões pessoais ou “iluminação interior”, é firmar-se no efêmero e se expor à ruína.
Contudo, a
história mostra que a tentação de subverter este princípio é antiga e
persistente. Desde a serpente no Éden até as seitas gnósticas e desigrejadas
modernas, sempre houve quem buscasse relativizar, reinterpretar ou complementar
a Palavra de Deus segundo critérios humanos. A hermenêutica desigrejada é o
fruto amargo desta presunção: a Escritura permanece, mas sua autoridade é
relativizada; a verdade é proclamada, mas apenas como sugestão, no máximo um
adendo; e a igreja, criada para ensinar e preservar a fé, é transformada em um
laboratório de opiniões individuais.
Antes de analisar
distorções ou heresias, é necessário firmar-se no fundamento. Os princípios do Sola
Scriptura não são invenções humanas, mas ordens divinamente inscritas,
desde Moisés até João. Cada registro, cada “está escrito” (gr. gegraptai),
aponta para a mesma verdade: Deus se comunica de forma definitiva e permanente.
Entender esses princípios é compreender que a Escritura não é apenas fonte de
doutrina, mas instrumento de disciplina, advertência e vida. O que está escrito
não é sugestão; é norma. E o que é norma deve ser lido, ensinado e obedecido,
sem manipulações, sem interpretações desvinculadas do contexto, e sempre à luz
do próprio Cristo que a encerra e a sela.
a.
A ordem de se deixar escrito
Desde o Éden, a Palavra de Deus foi o critério do juízo, mas a partir de Moisés, ela se tornou também o registro do juízo. O Deus que fala é o Deus que escreve. “Então disse o Senhor a Moisés: escreve isto para memória num livro” (Êx 17.14). O verbo hebraico kathab não sugere mero registro burocrático, mas uma inscrição solene, um testemunho permanente da vontade divina. A revelação, portanto, nasce com a intenção de ser preservada, não reinventada.
Deuteronômio 5.22
reforça o mesmo princípio: Deus escreveu com o Seu próprio dedo as palavras da
aliança e, tendo-as falado, não acrescentou mais nada. Há aqui um gesto
teológico: o limite da fala divina é o próprio Deus, não o entusiasmo humano. A
Escritura é completa porque procede de um Deus que não precisa “atualizar” o que
disse.
Josué, ao renovar
o pacto, “leu todas as palavras da lei, a bênção e a maldição” (Js
8.34). Ele não improvisou, não reinterpretou à luz de experiências espirituais
pessoais, não convocou um sínodo para decidir o que significava o texto. Ele
apenas leu, e isso bastou. A leitura pública da Escritura é o antídoto mais
antigo contra a hermenêutica da presunção.
b. O uso distorcido da palavra inspirada
Cristo responde
não com uma experiência mística, nem com uma “releitura pastoral”, mas com
outro “está escrito”. O Senhor não debate a Escritura; Ele a cita. Ele não a
transcende; Ele se submete. Na tentação do deserto, o Verbo de Deus vence o
diabo pela Palavra de Deus — o que é uma ironia digna de nota.
c. O atestado de inspiração
O apóstolo não
fala “conforme o Espírito me revelou ontem à noite”, mas “como está escrito”.
O princípio formal da fé cristã é textual, não intuitivo. Até a correção
eclesiástica em 1 Coríntios 4.6 se ancora no “para que em nós aprendais a
não ir além do que está escrito”. O mesmo Espírito que inspirou a Escritura
não inspira acréscimos.
Atos 1.20
demonstra que até os Salmos, poemas devocionais, são normativos para a prática
da igreja. Pedro lê Davi como se Davi tivesse escrito diretamente à assembleia
de Jerusalém. O cânon é o mesmo; apenas o tempo mudou. O mesmo princípio é
aplicado por Paulo em Efésios 5.19 e em Colossenses 3.16.
E quando João, em
Apocalipse, cita e alude ao Antigo Testamento em quase cada linha (mais de 500 alusões
ao AT), ele não está inovando; está confessando que a revelação final é a
reverberação das antigas. A nova aliança não corrige a anterior; ela a consuma.
2. O erro
hermenêutico em invalidar os ensinos de Cristo para a igreja neotestamentária
O Cristo que
ordenou “ide” também ordenou “ensinando-os a guardar todas as coisas que vos
tenho mandado” (Mt 28.20). A comissão é pedagógica, não experimental. A igreja
é chamada a ensinar o que recebeu de Cristo, não o que sente. E essa foi a doutrina
ensinada para a igreja pelos apóstolos.
O erro
hermenêutico dos desigrejados modernos consiste em amputar a continuidade entre
os Evangelhos e as Epístolas, como se Paulo houvesse corrigido Cristo. É uma
ironia teológica: os mesmos que afirmam ler “somente a Bíblia” tratam as
palavras do Senhor da Igreja como se fossem obsoletas para a Igreja.
A doutrina dos
apóstolos é a doutrina de Cristo, porque os apóstolos foram instruídos pelo
Espírito de Cristo. Nenhum apóstolo contradisse seu Mestre, mas muitos leitores
contradizem ambos.
Tiago, por
exemplo, não se opõe a Paulo; ele o explica. A carta de Tiago é escrita “às
doze tribos que se encontram na Dispersão” (Tg 1.1). A linguagem é figurada:
as doze tribos representam o Israel espiritual, a igreja composta de crentes
regenerados, não o Israel étnico. O conteúdo da epístola confirma isso: ele
trata de fé, obras, provações, sabedoria e comunhão; temas eclesiais, não
nacionalistas.
Podemos estender
em muito como Tiago é tão inspirado, e escreveu para a igreja neotestamentária,
quanto qualquer outro texto apostólico. Mas vamos nos ater brevemente ao tópico
da fé. O ensinamento de Tiago acerca da fé não se limita à relação entre crença
e obras; ele começa no capítulo 1, enfatizando a fé provada pelas adversidades:
“Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações; sabendo
que a prova da vossa fé produz perseverança” (Tiago 1.2-3). A fé verdadeira
não é estática, nem meramente intelectual; ela se manifesta e se fortalece em
meio às provações. É na pressão do mundo e na pressão da carne que a fé mostra
seu valor genuíno.
Paulo, ao citar
Habacuque, declara: “O justo viverá pela fé” (Rm 1.17; Gl 3.11; Hb
10.38). Aqui, a fé é confiança radical na justiça de Deus, sustentando o crente
em toda circunstância, inclusive nos tempos de provação. Tiago não contradiz
Paulo; ele complementa o ensino paulino mostrando como a fé se evidencia na
vida prática e perseverante do crente. A fé não é apenas uma certeza interna,
mas uma força dinâmica que opera em obediência, obras coerentes e resistência
às tentações.
A fé que não se
traduz em obras ou perseverança é, nas palavras de Tiago, “morta em si mesma”
(2.17). Ela se assemelha a um corpo sem alma; aparência de vida, mas sem
substância. Puritanos como John Owen comentam que a fé verdadeira é inseparável
das obras: não porque as obras justifiquem, mas porque a fé que não produz
frutos é “espírito morto e vaidoso”. Richard Baxter acrescenta que a fé autêntica
revela-se no amor ativo ao próximo e na prática fiel da Palavra de Deus.
Assim, o capítulo
1 de Tiago nos ensina que a fé é tanto confiança quanto resistência, tanto
certeza quanto prática. Integrada com o ensino paulino e com o eco do profeta
Habacuque, a carta de Tiago nos apresenta uma fé viva, perseverante e visível,
que sustenta o crente e glorifica a Deus.
Os hereges
antigos negaram a carta de Tiago porque não suportavam sua teologia do fruto;
os modernos a distorcem porque não suportam sua teologia da obediência. Ambas
as negações brotam da mesma raiz: o desprezo pela autoridade da Palavra
escrita.
A aceitação
universal da epístola pela igreja não foi um gesto político, mas o
reconhecimento de que ela se harmoniza perfeitamente com os evangelhos e com
Paulo. Onde o homem vê contradição, Deus revela coerência.
3. A semente antiga da distorção
Como já dizia
Salomão: “Não há nada novo debaixo do sol”. Assim, toda heresia é velha;
só muda o disfarce. A serpente no Éden inaugurou o ofício de exegeta autônomo:
“É assim que Deus disse?” (Gn 3.1). A dúvida hermenêutica foi o primeiro
pecado. Desde então, toda tentativa de “reler” a Palavra sem submeter-se a ela
é um salto do mesmo bote venenoso.
Na tentação de
Cristo, o diabo citou o Salmo 91 fora de contexto. Em Atos e nas epístolas, a
seita judaizante também distorcia a lei para minar a graça (At 15; Gl 3). Os
gnósticos dos tempos de João alegavam possuir uma “iluminação interior” que os
tornava independentes da Palavra escrita. João responde com a mais dura
simplicidade: “Quem não traz esta doutrina não o recebais em casa” (2Jo
10).
A história
eclesiástica registra o mesmo padrão: toda seita nasce de um texto tirado do
corpo da Escritura e erguido contra o resto. O herege é o primeiro a dizer “eu
tenho minha leitura”. A ortodoxia, por sua vez, é humilde: lê com a igreja, lê
com os séculos, lê de joelhos.
4. Seitas posteriores que aderiram ao princípio gnóstico e antinomiano
Do gnosticismo
primitivo nasceram mil filhotes espirituais. Os novacianos, os montanistas, os
anabatistas radicais, os místicos antinomianos: todos beberam da mesma fonte: a
Escritura reinterpretada pela “iluminação interior”.
O Sola
Scriptura protestante foi a resposta a essa confusão, mas o “espírito
desigrejado” a ressuscita em nova embalagem. O argumento é sempre o mesmo: “O
Espírito me disse”, “eles estão presos à velha Aliança”, “eles estão debaixo da
maldição”; não enxergam as nuances da Lei e suas aplicabilidades distintas entre
os Testamentos; são cegos guiando cegos. E o resultado é o mesmo: o Espírito
contradiz a si mesmo em cada esquina, em cada live, em cada canal de vídeo, em
cada postagem que sempre aponta para algo tenebrosamente egocentrista: “Deus me
revelou algo novo hoje”.
A ironia é
amarga: a geração que mais fala do Espírito é a que menos suporta o que o
Espírito escreveu.
5. O Sola Scriptura x Escritura + “iluminação interior”
O princípio da
Reforma não foi “somente a Escritura e a minha opinião sobre ela”, mas “somente
a Escritura como norma de toda fé e prática”. O Sola Scriptura não
autoriza o isolamento espiritual; ele o proíbe. A Escritura é suficiente, mas
não é subjetiva.
A “iluminação
interior” é um ministério do Espírito para compreender o que já foi revelado,
não para competir com a revelação. A mesma luz que ilumina o texto não apaga o
texto. Quando alguém diz “Deus falou comigo”, a única pergunta legítima é: “E
estava escrito onde?”
Os desigrejados
modernos, herdeiros da antiga serpente, dizem crer no Sola Scriptura,
mas o praticam como “Sola Experientia”. A igreja, para eles, é dispensável; o
texto, maleável; a tradição, opressora; e a comunhão, opcional. Reivindicam
liberdade, mas acabam escravos da própria interpretação.
O Sola
Scriptura puritano, porém, não é libertinagem hermenêutica; é disciplina
espiritual (2 Coríntios 10.5). A Palavra é lâmpada, não lanterna de acampamento
pessoal. A mesma Escritura que nos dá acesso a Cristo também nos prende à
comunhão dos santos.
O Espírito que
inspirou o texto não inspira deserção. O que Ele uniu — Palavra e Igreja, não
separe o individualismo pós-moderno.
6. A permanência e o selo da Escritura
A fé cristã não
repousa sobre uma revelação em aberto, mas sobre uma Palavra selada. Judas
exorta a igreja a “batalhar diligentemente pela fé que uma vez por todas foi
entregue aos santos” (Jd 3). O advérbio grego hapax destrói
qualquer pretensão de revelação progressiva além de Cristo e de seus apóstolos.
A fé foi entregue “uma vez por todas”; nem revisável, nem ampliável,
apenas preservável.
Pedro, por sua
vez, declara que fomos “regenerados não de semente corruptível, mas
incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e permanece para sempre”
(1Pe 1.23). A Escritura não é apenas inspirada; é incorruptível, permanente. O
que é vivo não precisa ser atualizado.
O autor de
Hebreus sela a argumentação: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes e
de muitas maneiras aos pais pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias
pelo Filho” (Hb 1.1-2). A revelação não apenas culmina em Cristo; ela se
encerra n’Ele. O Filho é a Palavra final de Deus ao mundo. E quando o mesmo
Cristo ressurreto dita a João as últimas palavras do Apocalipse, o selo é
posto: “Se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus lhe acrescentará as
pragas que estão escritas neste livro” (Ap 22.18).
A revelação não é
um fluxo contínuo; é um rio que chegou ao mar. O cânon é o memorial escrito da
fala divina, fechado não por medo, mas por plenitude.
Aqueles que
clamam por “novas palavras do Espírito” esquecem que o Espírito já falou, e
ainda fala, nas Escrituras e tão somente nelas. Quem ignora o que “está
escrito” jamais compreenderá o que Deus diz.
Notas
·
Cf. John Calvin, Institutas da Religião Cristã,
São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 80–81.
·
Cf.
John Owen, The Works of John Owen, Vol. III, Edinburgh: Banner of Truth Trust,
1965, p. 234–236.
·
Cf.
Richard Baxter, The Reformed Pastor, London: James Nisbet, 1830, p. 47–49.
·
Cf.
Thomas Watson, A Body of Divinity, Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1958, p.
12.
·
Cf.
Samuel Rutherford, Lex, Rex, Edinburgh: Robert Ogle, 1843, p. 93.
·
Cf. Martin Luther, De Servo Arbitrio, São
Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 211–214.
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