quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O SOLA SCRIPTURA E A HERMENÊUTICA DESIGREJADA


A doutrina do Sola Scriptura não é mero conceito abstrato ou argumento acadêmico. É a pedra angular sobre a qual a igreja reformada se sustenta, o alicerce firme que Cristo mesmo comparou à casa construída sobre a rocha: “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha” (Mt 7.24). Não se trata apenas de ouvir ou admirar a Palavra, mas de submeter-se a ela com obediência perseverante. Construir sobre a areia, reinterpretando a Escritura segundo experiências subjetivas, opiniões pessoais ou “iluminação interior”, é firmar-se no efêmero e se expor à ruína.

Contudo, a história mostra que a tentação de subverter este princípio é antiga e persistente. Desde a serpente no Éden até as seitas gnósticas e desigrejadas modernas, sempre houve quem buscasse relativizar, reinterpretar ou complementar a Palavra de Deus segundo critérios humanos. A hermenêutica desigrejada é o fruto amargo desta presunção: a Escritura permanece, mas sua autoridade é relativizada; a verdade é proclamada, mas apenas como sugestão, no máximo um adendo; e a igreja, criada para ensinar e preservar a fé, é transformada em um laboratório de opiniões individuais.

 Este artigo se propõe a examinar a Escritura em sua própria luz, mostrando que o Sola Scriptura não é abstração teórica, mas disciplina espiritual: é o alicerce sólido que protege a igreja do erro, sustenta a fé e garante que a casa do crente permaneça firme, mesmo em meio às tempestades do engano e da confusão.


 1.       Os Princípios do Sola Scriptura na Escritura


Antes de analisar distorções ou heresias, é necessário firmar-se no fundamento. Os princípios do Sola Scriptura não são invenções humanas, mas ordens divinamente inscritas, desde Moisés até João. Cada registro, cada “está escrito” (gr. gegraptai), aponta para a mesma verdade: Deus se comunica de forma definitiva e permanente. Entender esses princípios é compreender que a Escritura não é apenas fonte de doutrina, mas instrumento de disciplina, advertência e vida. O que está escrito não é sugestão; é norma. E o que é norma deve ser lido, ensinado e obedecido, sem manipulações, sem interpretações desvinculadas do contexto, e sempre à luz do próprio Cristo que a encerra e a sela.

 

a. A ordem de se deixar escrito

Desde o Éden, a Palavra de Deus foi o critério do juízo, mas a partir de Moisés, ela se tornou também o registro do juízo. O Deus que fala é o Deus que escreve. “Então disse o Senhor a Moisés: escreve isto para memória num livro” (Êx 17.14). O verbo hebraico kathab não sugere mero registro burocrático, mas uma inscrição solene, um testemunho permanente da vontade divina. A revelação, portanto, nasce com a intenção de ser preservada, não reinventada.

Deuteronômio 5.22 reforça o mesmo princípio: Deus escreveu com o Seu próprio dedo as palavras da aliança e, tendo-as falado, não acrescentou mais nada. Há aqui um gesto teológico: o limite da fala divina é o próprio Deus, não o entusiasmo humano. A Escritura é completa porque procede de um Deus que não precisa “atualizar” o que disse.

Josué, ao renovar o pacto, “leu todas as palavras da lei, a bênção e a maldição” (Js 8.34). Ele não improvisou, não reinterpretou à luz de experiências espirituais pessoais, não convocou um sínodo para decidir o que significava o texto. Ele apenas leu, e isso bastou. A leitura pública da Escritura é o antídoto mais antigo contra a hermenêutica da presunção.

 Isaías, em tom de ironia divina, recebe a ordem: “Agora vai, escreve isso numa tábua perante eles, e num livro registra-o, para que fique até o último dia, para sempre e perpetuamente” (Is 30.8). O profeta é mandado a registrar a obstinação do povo, pois até a rebeldia precisa ser lembrada por escrito; talvez porque a memória religiosa humana é seletiva demais quando o pecado é seu próprio tema. Jeremias recebe ordem semelhante: “Escreve num livro todas as palavras que te falei” (Jr 30.2). Nenhum oráculo é confiado à subjetividade da lembrança. A inspiração não depende do humor do profeta, mas do comando do Autor.

 

b. O uso distorcido da palavra inspirada

 O primeiro a citar a Escritura foi o diabo. “Está escrito”, disse ele ao próprio Verbo encarnado (Mt 4). Satanás inaugurou a exegese desigrejada: uma hermenêutica sem contexto, sem reverência, sem submissão à comunidade dos santos. Ele usa o texto inspirado como bisturi para ferir o próprio Autor. E o método não envelheceu. A serpente do deserto continua atualizando seus blogs teológicos, oferecendo ao público ansioso “novas leituras” da mesma velha mentira: “É assim que Deus disse?”

Cristo responde não com uma experiência mística, nem com uma “releitura pastoral”, mas com outro “está escrito”. O Senhor não debate a Escritura; Ele a cita. Ele não a transcende; Ele se submete. Na tentação do deserto, o Verbo de Deus vence o diabo pela Palavra de Deus — o que é uma ironia digna de nota.

 

c. O atestado de inspiração

 A autoridade do “está escrito” percorre o Novo Testamento como um fio de ouro atravessando o tecido da revelação. Em Mateus 2.5, as Escrituras definem o local do nascimento do Messias. Em Mateus 4.4, fundamentam a ética do pão e da obediência. Em Lucas 22.44-46, sustentam o drama da cruz. Em Atos 15.15, determinam o consenso doutrinário da igreja. Em Romanos 1.17, justificam a fé; em 3.10, a condenação; em 9.13, a eleição; em 12.19, a justiça; em 15.4, a esperança.

O apóstolo não fala “conforme o Espírito me revelou ontem à noite”, mas “como está escrito”. O princípio formal da fé cristã é textual, não intuitivo. Até a correção eclesiástica em 1 Coríntios 4.6 se ancora no “para que em nós aprendais a não ir além do que está escrito”. O mesmo Espírito que inspirou a Escritura não inspira acréscimos.

Atos 1.20 demonstra que até os Salmos, poemas devocionais, são normativos para a prática da igreja. Pedro lê Davi como se Davi tivesse escrito diretamente à assembleia de Jerusalém. O cânon é o mesmo; apenas o tempo mudou. O mesmo princípio é aplicado por Paulo em Efésios 5.19 e em Colossenses 3.16.

E quando João, em Apocalipse, cita e alude ao Antigo Testamento em quase cada linha (mais de 500 alusões ao AT), ele não está inovando; está confessando que a revelação final é a reverberação das antigas. A nova aliança não corrige a anterior; ela a consuma.

 

2. O erro hermenêutico em invalidar os ensinos de Cristo para a igreja neotestamentária

 

O Cristo que ordenou “ide” também ordenou “ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho mandado” (Mt 28.20). A comissão é pedagógica, não experimental. A igreja é chamada a ensinar o que recebeu de Cristo, não o que sente. E essa foi a doutrina ensinada para a igreja pelos apóstolos.

O erro hermenêutico dos desigrejados modernos consiste em amputar a continuidade entre os Evangelhos e as Epístolas, como se Paulo houvesse corrigido Cristo. É uma ironia teológica: os mesmos que afirmam ler “somente a Bíblia” tratam as palavras do Senhor da Igreja como se fossem obsoletas para a Igreja.

A doutrina dos apóstolos é a doutrina de Cristo, porque os apóstolos foram instruídos pelo Espírito de Cristo. Nenhum apóstolo contradisse seu Mestre, mas muitos leitores contradizem ambos.

Tiago, por exemplo, não se opõe a Paulo; ele o explica. A carta de Tiago é escrita “às doze tribos que se encontram na Dispersão” (Tg 1.1). A linguagem é figurada: as doze tribos representam o Israel espiritual, a igreja composta de crentes regenerados, não o Israel étnico. O conteúdo da epístola confirma isso: ele trata de fé, obras, provações, sabedoria e comunhão; temas eclesiais, não nacionalistas.

Podemos estender em muito como Tiago é tão inspirado, e escreveu para a igreja neotestamentária, quanto qualquer outro texto apostólico. Mas vamos nos ater brevemente ao tópico da fé. O ensinamento de Tiago acerca da fé não se limita à relação entre crença e obras; ele começa no capítulo 1, enfatizando a fé provada pelas adversidades: “Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações; sabendo que a prova da vossa fé produz perseverança” (Tiago 1.2-3). A fé verdadeira não é estática, nem meramente intelectual; ela se manifesta e se fortalece em meio às provações. É na pressão do mundo e na pressão da carne que a fé mostra seu valor genuíno.

Paulo, ao citar Habacuque, declara: “O justo viverá pela fé” (Rm 1.17; Gl 3.11; Hb 10.38). Aqui, a fé é confiança radical na justiça de Deus, sustentando o crente em toda circunstância, inclusive nos tempos de provação. Tiago não contradiz Paulo; ele complementa o ensino paulino mostrando como a fé se evidencia na vida prática e perseverante do crente. A fé não é apenas uma certeza interna, mas uma força dinâmica que opera em obediência, obras coerentes e resistência às tentações.

A fé que não se traduz em obras ou perseverança é, nas palavras de Tiago, “morta em si mesma” (2.17). Ela se assemelha a um corpo sem alma; aparência de vida, mas sem substância. Puritanos como John Owen comentam que a fé verdadeira é inseparável das obras: não porque as obras justifiquem, mas porque a fé que não produz frutos é “espírito morto e vaidoso”.  Richard Baxter acrescenta que a fé autêntica revela-se no amor ativo ao próximo e na prática fiel da Palavra de Deus.

Assim, o capítulo 1 de Tiago nos ensina que a fé é tanto confiança quanto resistência, tanto certeza quanto prática. Integrada com o ensino paulino e com o eco do profeta Habacuque, a carta de Tiago nos apresenta uma fé viva, perseverante e visível, que sustenta o crente e glorifica a Deus.

Os hereges antigos negaram a carta de Tiago porque não suportavam sua teologia do fruto; os modernos a distorcem porque não suportam sua teologia da obediência. Ambas as negações brotam da mesma raiz: o desprezo pela autoridade da Palavra escrita.

A aceitação universal da epístola pela igreja não foi um gesto político, mas o reconhecimento de que ela se harmoniza perfeitamente com os evangelhos e com Paulo. Onde o homem vê contradição, Deus revela coerência.

 

3. A semente antiga da distorção

 

Como já dizia Salomão: “Não há nada novo debaixo do sol”. Assim, toda heresia é velha; só muda o disfarce. A serpente no Éden inaugurou o ofício de exegeta autônomo: “É assim que Deus disse?” (Gn 3.1). A dúvida hermenêutica foi o primeiro pecado. Desde então, toda tentativa de “reler” a Palavra sem submeter-se a ela é um salto do mesmo bote venenoso.

Na tentação de Cristo, o diabo citou o Salmo 91 fora de contexto. Em Atos e nas epístolas, a seita judaizante também distorcia a lei para minar a graça (At 15; Gl 3). Os gnósticos dos tempos de João alegavam possuir uma “iluminação interior” que os tornava independentes da Palavra escrita. João responde com a mais dura simplicidade: “Quem não traz esta doutrina não o recebais em casa” (2Jo 10).

A história eclesiástica registra o mesmo padrão: toda seita nasce de um texto tirado do corpo da Escritura e erguido contra o resto. O herege é o primeiro a dizer “eu tenho minha leitura”. A ortodoxia, por sua vez, é humilde: lê com a igreja, lê com os séculos, lê de joelhos.

 

4. Seitas posteriores que aderiram ao princípio gnóstico e antinomiano

 

Do gnosticismo primitivo nasceram mil filhotes espirituais. Os novacianos, os montanistas, os anabatistas radicais, os místicos antinomianos: todos beberam da mesma fonte: a Escritura reinterpretada pela “iluminação interior”.

O Sola Scriptura protestante foi a resposta a essa confusão, mas o “espírito desigrejado” a ressuscita em nova embalagem. O argumento é sempre o mesmo: “O Espírito me disse”, “eles estão presos à velha Aliança”, “eles estão debaixo da maldição”; não enxergam as nuances da Lei e suas aplicabilidades distintas entre os Testamentos; são cegos guiando cegos. E o resultado é o mesmo: o Espírito contradiz a si mesmo em cada esquina, em cada live, em cada canal de vídeo, em cada postagem que sempre aponta para algo tenebrosamente egocentrista: “Deus me revelou algo novo hoje”.

A ironia é amarga: a geração que mais fala do Espírito é a que menos suporta o que o Espírito escreveu.

 

5. O Sola Scriptura x Escritura + “iluminação interior”

 

O princípio da Reforma não foi “somente a Escritura e a minha opinião sobre ela”, mas “somente a Escritura como norma de toda fé e prática”. O Sola Scriptura não autoriza o isolamento espiritual; ele o proíbe. A Escritura é suficiente, mas não é subjetiva.

A “iluminação interior” é um ministério do Espírito para compreender o que já foi revelado, não para competir com a revelação. A mesma luz que ilumina o texto não apaga o texto. Quando alguém diz “Deus falou comigo”, a única pergunta legítima é: “E estava escrito onde?”

Os desigrejados modernos, herdeiros da antiga serpente, dizem crer no Sola Scriptura, mas o praticam como “Sola Experientia”. A igreja, para eles, é dispensável; o texto, maleável; a tradição, opressora; e a comunhão, opcional. Reivindicam liberdade, mas acabam escravos da própria interpretação.

O Sola Scriptura puritano, porém, não é libertinagem hermenêutica; é disciplina espiritual (2 Coríntios 10.5). A Palavra é lâmpada, não lanterna de acampamento pessoal. A mesma Escritura que nos dá acesso a Cristo também nos prende à comunhão dos santos.

O Espírito que inspirou o texto não inspira deserção. O que Ele uniu — Palavra e Igreja, não separe o individualismo pós-moderno.

 

6. A permanência e o selo da Escritura

 

A fé cristã não repousa sobre uma revelação em aberto, mas sobre uma Palavra selada. Judas exorta a igreja a “batalhar diligentemente pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3). O advérbio grego hapax destrói qualquer pretensão de revelação progressiva além de Cristo e de seus apóstolos. A fé foi entregue “uma vez por todas”; nem revisável, nem ampliável, apenas preservável.

Pedro, por sua vez, declara que fomos “regenerados não de semente corruptível, mas incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e permanece para sempre” (1Pe 1.23). A Escritura não é apenas inspirada; é incorruptível, permanente. O que é vivo não precisa ser atualizado.

O autor de Hebreus sela a argumentação: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes e de muitas maneiras aos pais pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho” (Hb 1.1-2). A revelação não apenas culmina em Cristo; ela se encerra n’Ele. O Filho é a Palavra final de Deus ao mundo. E quando o mesmo Cristo ressurreto dita a João as últimas palavras do Apocalipse, o selo é posto: “Se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus lhe acrescentará as pragas que estão escritas neste livro” (Ap 22.18).

A revelação não é um fluxo contínuo; é um rio que chegou ao mar. O cânon é o memorial escrito da fala divina, fechado não por medo, mas por plenitude.

Aqueles que clamam por “novas palavras do Espírito” esquecem que o Espírito já falou, e ainda fala, nas Escrituras e tão somente nelas. Quem ignora o que “está escrito” jamais compreenderá o que Deus diz.

 

Notas

 

·        Cf. John Calvin, Institutas da Religião Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 80–81.

·        Cf. John Owen, The Works of John Owen, Vol. III, Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1965, p. 234–236.

·        Cf. Richard Baxter, The Reformed Pastor, London: James Nisbet, 1830, p. 47–49.

·        Cf. Thomas Watson, A Body of Divinity, Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1958, p. 12.

·        Cf. Samuel Rutherford, Lex, Rex, Edinburgh: Robert Ogle, 1843, p. 93.

·        Cf. Martin Luther, De Servo Arbitrio, São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 211–214.

 

 

 

 

 

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