Os leitores mais atentos perceberam que a afirmação que Cristo fez foi transformada em pergunta no título desse texto. O motivo é questionarmos exatamente o que significa a afirmação que Cristo fez. A resposta a isso tem implicações diretas com os extremos vistos tanto no meio evangélico quanto no contexto de seitas no que diz respeito ao quarto mandamento.
De um lado temos os sabatistas que
enfatizam o dia de sábado como sendo o dia correto para se ter a reunião
solene. Por outro lado, temos um setor evangélico que afirma não ter um dia
específico para isso.
Podemos começar levantando a dúvida
se o Shabbath, conforme traduzido em muitas línguas por “sábado”, de fato se
concretiza especificamente no nosso calendário como o sétimo dia da semana. Também
podemos fazer o mesmo se o Shabbath, determinado no Quarto Mandamento, não
encontra respaldo para que a igreja o guarde nos nossos dias.
Perceba que existe uma tensão entre
os dois argumentos; são extremos. É para manter o Shabbath no sábado, ou a
partir de Cristo o Quarto Mandamento deixou de ser válido?
A definição de Shabbath.
A palavra Shabbath, literalmente, não se refere a um dia específico da semana que, hoje, chamamos de sábado. A tradução literal de Shabbath é “descanso”. O termo sábado é tão somente a transliteração do termo שַׁבָּת Shabbath, dos caracteres hebraicos, para outras línguas. Mas sua tradução consiste em “Descanso”. A palavra שַׁבָּת (shabbāth) vem do verbo hebraico שָׁבַת (shābath), que significa literalmente: "cessar, parar, descansar, interromper uma atividade”
O quarto mandamento, de fato, não se refere a um dia, mas a um
princípio: o princípio de um período de descanso a cada seis períodos trabalhados.
O respaldo dessa afirmação está em várias passagens do Antigo Testamento. Veja a ordem em Êxodo 35:2: “Trabalhareis seis dias, mas o sétimo dia vos será santo, o sábado do repouso solene ao SENHOR; quem nele trabalhar morrerá.”
O princípio de se trabalhar o
período de seis dias e descansar um é plenamente visto aqui, e não há definição
plena no texto de que esse dia do Shabbath (descanso) se aplica a um determinado
dia específico da semana.
Em Levítico 25:2-4, esse mesmo
princípio do Shabbath (descanso) é aplicado de forma plena e nominal, não a um
dia específico, mas ao período de um ano. “Fala aos filhos de Israel e
dize-lhes: Quando entrardes na terra, que vos dou, então, a terra guardará um
sábado ao SENHOR. Seis anos semearás o teu campo, e seis anos podarás a tua
vinha, e colherás os seus frutos. Porém, no sétimo ano, haverá sábado de
descanso solene para a terra, um sábado ao SENHOR; não semearás o teu campo,
nem podarás a tua vinha.”
Sem mais nem mas, o termo descanso, “Shabbath”, não significa um dia específico que conhecemos como sábado. O que se
vê claramente aqui é que ele se trata de um princípio onde se deve resguardar
um período de descanso a cada seis períodos trabalhados. E isso era válido tanto para o trabalho dos homens quanto para o trabalho da terra.
Desta maneira, precisamos ter claro
em nossa mente o sentido real do termo quando lemos: “Guarda o dia de sábado
para o santificar”. Deus está, literalmente ordenando: “Guarda o dia de
descanso para o santificar”. Deus está ordenando o princípio do descanso, e não
um dia específico.
Daqui podemos entender o motivo
pelo qual se gera um certo desconforto entre as palavras e as atitudes de
Jesus. Justamente por não entenderem o princípio do descanso, os fariseus
acusaram Jesus e seus discípulos de quebrarem o quarto mandamento. Pois, para
eles, se tratava de um dia específico que se passou a ser chamado de sábado.
Cristo, em várias ocasiões afirmou
que Ele não teria vindo para desfazer as Leis de Moisés, mas para cumprí-las.
Se, de fato, o Shabath significa um dia específico da semana, Cristo o quebrou
em várias ocasiões. Não é à toa que os fariseus tentaram matá-lo por isso, pois
assim eles entendiam o sábado.
Contudo, Jesus, de fato, não
quebrou o quarto mandamento quando ele curou no “sábado”, ou permitiu e anuiu
aos seus discípulos que colhessem do fruto da terra em dia de “sábado”. A
consistência de Jesus estava em conhecer a natureza do Shabath como o princípio
do descanso e não como um dia específico.
A perenidade do descanso
“Pelo que os filhos de Israel guardarão o sábado, celebrando-o por aliança perpétua nas suas gerações.” Êxodo 31:16
Desse texto temos três ensinos que
podemos extrair. Primeiramente do que vimos ao final do último argumento, de
que Cristo cumpriu o quarto mandamento, não em guardar um dia específico da
semana, mas em guardar o princípio do Shabbath, o descanso. E, em segundo lugar, de que o Shabath nunca teria fim, é “perpétuo”. O terceiro ensino é que
a ordem trazida por meio de Moisés teve um início, e esse início não foi historicamente
no Éden.
Desse segundo ensino, direcionamos
exatamente contra aqueles que afirmam que, hoje, não temos obrigação de guardar
um dia específico para a adoração. Se não se trata de um dia específico, mas um
princípio, e esse princípio é “perpétuo” então não podemos afirmar que esse
princípio tenha sido anulado por Cristo ao fazer a afirmação de que Ele “...
é o Senhor do sábado...”; afinal de contas Ele diz: “Não penseis que vim
revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.” (Mateus
5:17).
Sobre o terceiro ensino devemos
lembrar que Moisés é o autor de Gênesis, não foi Adão. O que Moisés escreveu, sob inspiração do Espírito Santo, é decorrente da revelação de Deus, no monte
Sinai depois da saída do Egito, e não do que Adão e Eva ou seus descendentes já
conheciam e guardavam desde a criação.
Neemias, ao retornar do exílio Babilônico, escreveu: “O teu santo sábado lhes fizeste conhecer; preceitos, estatutos e lei, por intermédio de Moisés, teu servo, lhes mandaste.” (Neemias 9:14). Ele está claramente afirmando que o shabbath só passou a ser conhecido ao povo israelita que saía do Egito, por meio de Moisés e que, portanto, não era conhecido daqueles que vieram antes de Israel.
Tal preceito é contrastante no que
diz respeito ao dízimo, que é atemporal em relação à Lei. O argumento sobre
isso é o contrário do argumento relativo ao sábado, mas é notório quando vemos Abraão
dar o dízimo a Melquisedeque; ou quando vemos Jacó afirmar, enquanto fugia de
seu irmão, que seria dizimista, e isso antes de Moisés trazer a revelação da
lei acerca do dízimo. Já o princípio do Shabath, tendo sido revelado por meio
de Moisés, instituiu que fosse, pelos judeus, guardado temporariamente no
sétimo dia da semana, resguardando o princípio perene do Shabath.
"A guarda do domingo é a marca da
besta"
Essa é uma afirmação feita por Ellen White em seus escritos, como em “O Grande Conflito” (1888/1911) no capítulo 25 (“A Lei Imutável de Deus”) e também no capítulo 36 (“O Fim do Conflito”). Ellen não tinha conhecimento de línguas originais, nem teve uma formação teológica, mas afirmou reiteradamente ter recebido revelações extrabíblicas.
Ellen G. White afirmou
repetidamente que suas mensagens não vinham de si mesma, mas de visões, sonhos
e revelações angelicais. Ela usa expressões como “um anjo me mostrou” ou “fui
arrebatada em visão”. Isso aparece em várias de suas obras mais antigas e
também nas posteriores.
Aqui ela fala claramente de
revelação sobrenatural. “Testemunhos para a Igreja”, vol. 1–9. Diversas vezes
ela escreve: “Fui em visão levada à presença de Deus”, “um anjo me disse”, ou
“fui instruída pelo Senhor”.
Exemplo: no Testemunhos, vol. 1, p.
62, ela afirma: “Deus tem-me dado luz sobre o futuro, através de sonhos e
visões da noite.”
“O Grande Conflito” (edições de
1884, 1888, 1911). Embora o tom seja mais histórico e expositivo, ela afirma
que muito do que escreve veio de “visões que me foram dadas”.
“Vida e Ensinos” / “Minha Vida
Hoje” (compilações posteriores). Reúnem trechos em que ela se refere a
instruções recebidas por anjos.
Certamente, Ellen G. White entendia seus escritos como sendo inspirados diretamente pelo Espírito Santo. Essa perspectiva é corroborada por diversos membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia que reconhecem nela o dom profético. Abaixo, apresento duas citações que refletem essa visão:
“Somos testemunhas de como a Igreja
tem sido abençoada e guiada por Deus através do conselho inspirado de Sua
mensageira [Ellen G. White]… Reconhecemos em Ellen G. White o dom de profecia e
afirmamos que, quando este dom é valorizado e sua instrução atendida, a Igreja
prospera…” https://defendendoafe.com.br/citacoes-sobre-ellen-g-white-de-fontes-adventistas/?utm_
“A razão de não haver mais profundo
fervor religioso, nem mais ardente amor uns pelos outros na igreja, é que o
espírito missionário vem-se extinguindo.”
https://ellenwhite.cpb.com.br/livro/index/24/126/131/o-verdadeiro-espirito-missionario?utm
Essas citações evidenciam a crença
de que os escritos de Ellen G. White são considerados por seus seguidores como
instruções inspiradas diretamente por Deus, desempenhando um papel fundamental
na orientação espiritual e no fortalecimento da fé da comunidade adventista.
Profecias hoje?
Primeiramente, precisamos entender
que as profecias e revelações foram encerradas com o período apostólico. Paulo
afirma categoricamente em 1 Coríntios 13, contrastando a perenidade do amor com
os dons transitórios, temporários da igreja: línguas e profecias, revelações
(conhecimento). Tais dons tinham o propósito específico de perdurarem até que a
revelação completa, suficiente e inerrante da Escritura estivesse encerrada:
"o perfeito”. Então aquilo que era conhecido em parte “a Escritura”
deixaria sua imperfeição, no sentido de completude (até então somente o AT
estava escrito) para que alcançasse a perfeição: Gênesis até Apocalipse. Tais
dons ainda persistiriam um tempo na igreja pois, era através deles que a
Escritura estava sendo escrita pela inspiração do Espírito Santo debaixo da
autoridade apostólica.
Judas declara: “Amados, quando
empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi
que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes,
diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos.”
(Judas 1:3). Essa “fé... entregue de uma vez por todas” diz respeito a
todo ensino deixado por Cristo e entregue pelos apóstolos. Tudo o que é
necessário para que o eleito seja convertido (Ef 1.13) e, tudo para que o
Cristão viva em santificação (2Tm 3.15-17).
Por isso, Paulo ao escrever aos
gálatas afirma que qualquer revelação diferente daquilo que eles deixaram para
a igreja, deve ser considerada uma maldição. É das próprias palavras de Ellen
em seus escritos que, ela mesma, se enquadrou nessa maldição descrita por
Paulo. “Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue
evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema.” (Gálatas
1.8)
Ellen, ao sugerir que a guarda do domingo
ao invés do sábado seria a marca da besta, estava considerando “teologicamente”
apesar de não ter formação para isso, duas questões: O decreto de Constantino e
um reforço posterior pela igreja romana.
O primeiro decreto civil sobre o
domingo não veio de um papa, mas do imperador Constantino, em 7 de março de 321
d.C.. Ele determinou que o “venerável dia do Sol” fosse observado como dia de
descanso em todo o império romano, excetuando-se os trabalhos agrícolas. Esse
foi um edito imperial, não papal e tratou-se de um decreto civil e não
eclesiástico.
Para Ellen, a igreja de Roma,
gradualmente, reforçou a prática. Seu fundamento está no Concílio de Laodiceia
(por volta de 363–364 d.C.) quando decretou no cânon 29 que os cristãos não
deviam “judaizar” guardando o sábado, mas deviam trabalhar nesse dia e honrar o
domingo. Os bispos de Roma (que mais tarde seriam chamados papas) apoiaram e
ampliaram esse costume, mas o início concreto veio de Constantino.
Como lhe faltava conhecimento
bíblico e julgava suas “revelações extra-bíblicas” superiores à da Escritura,
o entendimento pessoal de Ellen acerca do Shabath foi transmitido aos seus discípulos
dessa maneira. Aos seus adeptos lhes cabe procurar fazer conforme de
Bereia: examinar as escrituras para ver se, de fato, as coisas eram assim.
A permanência do princípio nas
duas Alianças.
Já no século II aparecem
testemunhos sobre a prática dominical. O nome que mais se destaca é Justino
Mártir (c. 100–165 d.C.). No seu escrito “Primeira Apologia”, capítulo 67, ele
explica o culto cristão e menciona o domingo: ele diz que os cristãos se reuniam
“no dia chamado do Sol” (dies solis). Ele justifica a prática dizendo que foi o
dia em que Deus começou a criar o mundo e também o dia em que Jesus ressuscitou
dos mortos. A reunião incluía leitura dos escritos dos apóstolos e profetas,
instrução, oração em comum, e depois a celebração da Ceia do Senhor.
Em resumo, Justino não fala de um
mandamento bíblico para a guarda do domingo, mas descreve o costume já presente
entre comunidades cristãs de Roma no século II, associando-o à ressurreição e à
criação.
· Barnabé (na chamada Epístola de Barnabé, c. 130 d.C.) diz que o “oitavo dia” é o dia em que Cristo ressuscitou, visto como dia de alegria.
No capítulo 14, esse documento trata
especificamente da assembleia cristã e menciona o “dia do Senhor” (κυριακὴ ἡμέρα).
O texto diz:
“No dia do Senhor, reuní-vos, parti o pão e dai
graças, depois de ter confessado os vossos pecados, para que o vosso sacrifício
seja puro. Todo aquele que tiver algum conflito com o irmão não se junte
convosco até que estejam reconciliados, para que o vosso sacrifício não seja
profanado. Pois este é o sacrifício do qual o Senhor disse: ‘Em todo lugar e
tempo oferecer-me-ão um sacrifício puro, porque sou um grande Rei, diz o Senhor,
e o meu nome é admirável entre as nações’ (Malaquias 1:11,14).”
O que vemos aqui é que a Didachê fala em “dia do Senhor” como o momento de reunião, e a prática é partir o pão (Ceia) e dar graças (oração eucarística). Não entra em debates sobre o sábado nem apresenta um mandamento de “guardar” o domingo como substituição. No documento, o domingo como sendo o “Dia do Senhor” é algo natural. O foco é no culto comunitário, reconciliação e pureza antes da Ceia.
Ou seja: já no fim do século I, a
expressão “dia do Senhor” estava ligada ao domingo (dia da ressurreição), mas
em tom de prática litúrgica, não como lei cerimonial guardada pelos judeus em
detrimento do princípio eterno do Shabath.
O texto bíblico de Apocalipse 1.10
Literalmente é: “Achei-me em
espírito no dia do Senhor.”
Aqui, κυριακῇ ἡμέρᾳ (kyriakē hēmera) significa “dia pertencente ao Senhor”.
Na tradução latina desse texto, que
é chamada de Vulgata escrita por de Jerônimo (séc. IV), a frase foi traduzida:
dominica die = “dia do Senhor”.
O adjetivo dominicus vem de dominus
(senhor).
Esse dominica (dies) começou a ser
usado como designação técnica para o domingo.
· Português: domingo
· Espanhol: domingo
· Italiano: domenica
· Francês antigo: demenche → dimanche
· Romeno: duminică
Portanto, o nosso “domingo” deriva
diretamente da expressão de Apocalipse 1.10 na tradução latina, que preservou o
adjetivo “dominicus” como marcador do dia semanal ligado ao Senhor.
Em resumo: a expressão κυριακὴ ἡμέρα
de Apocalipse 1.10, traduzida por Jerônimo como dominica die, foi absorvida
pelo uso litúrgico cristão e acabou se tornando o próprio nome do primeiro dia
da semana nas línguas românicas, o nosso domingo.
No contexto bíblico e da prática
apostólica, essa mudança de nome reflete também a transição da observância do
Shabbath judaico para o dia em que a igreja se reunia para o culto e a ceia,
mostrando que o princípio do descanso e da consagração não dependia de um nome
específico.
O sábado também possui uma origem
ligada a uma divindade pagã. Em inglês, o sábado é chamado de Saturday,
em alemão Samstag (ou Sonnabend, em algumas regiões). Saturday
vem do latim dies Saturni, literalmente “dia de Saturno”, o deus
romano da agricultura e do tempo. Assim como o domingo (“dies solis”)
homenageava o Sol, o sábado romano homenageava Saturno.
Originalmente, no calendário
romano, cada dia da semana era associado a um corpo celeste e à divindade
correspondente: Sol (domingo), Lua (segunda), Marte (terça), Mercúrio (quarta),
Júpiter (quinta), Vênus (sexta) e Saturno (sábado).
Quando os germânicos receberam essa
semana de sete dias dos romanos, mantiveram os nomes, mas adaptaram a maioria
aos seus próprios deuses, com exceção de Saturday, que preservou o nome de
Saturno.
Antes de falarmos da mudança vista
na Escritura, precisamos tratar um pouco sobre formulação de doutrinas. Uma
doutrina para ser bíblica precisa estar embasada diretamente em um texto
bíblico, mas não de forma isolada, e sim em todo o contexto bíblico. Não
necessariamente precisamos ter uma ordem explícita e direta, mas a partir de
exemplos práticos, embasados no contexto bíblico, a doutrina pode e deve ser
estabelecida.
Certamente, ocorreu uma mudança na
prática apostólica e da igreja neotestamentária com respeito ao dia do
descanso. Não há um texto específico no Novo Testamento dizendo algo do tipo:
“Agora o dia a ser guardado é o domingo, e não mais o sábado”. E por que não há
tal ordem explícita? Não há essa ordem explícita porque o Quarto Mandamento
nunca especificou um dia da semana, mas um princípio, o Shabbath – literalmente
descanso. Esse princípio permaneceu intacto no Novo Testamento e os apóstolos,
bem como a igreja primitiva, viveram e praticaram esse princípio perene.
O Novo Testamento já afirmou a
mudança da prática dos apóstolos em não mais guardar o dia do Shabbath
(descanso) no dia da semana que conhecemos por sábado, último dia da semana. A
prática apostólica já demonstrou que a igreja daquele tempo já havia passado a
guardar o domingo. Entretanto, como já vimos, a palavra domingo passou a
ser usada bem posteriormente a Jerônimo com sua versão da Vulgata.
Em dois momentos distintos no Novo
Testamento, o apóstolo Paulo fala do “primeiro dia da semana”, que é o nosso
domingo, como sendo o dia em que eles se reuniam para: ouvir a pregação, cear
e trazer as ofertas; ou seja, cultuar ao Senhor.
Em Atos 20.7, lemos: “No
primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão,
Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e prolongou o
discurso até à meia-noite.”. É notório que as palavras: “primeiro dia da
semana” é uma referência ao dia em que hoje conhecemos por domingo.
O mesmo se dá quando Paulo escreve
à igreja de Corinto em 1 Coríntios 16:2: “No primeiro dia da semana, cada um
de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando,
para que se não façam coletas quando eu for”. A pergunta é, por que no “primeiro
dia da semana”? A resposta é clara e
objetiva, porque a igreja se reunia no “primeiro dia da semana”,
domingo.
É por esse motivo que Paulo, quando
escreve aos Colossenses, enquadra o sábado judaico não como um sábado
profanado, mas o inclui nas leis cerimoniais e o exclui do princípio eterno do
descanso. Ele assim diz: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e
bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido
sombra das coisas que haviam de vir; ...” (Colossenses 2:16).
Alegar que esse sábado, dito por
Paulo, é um sábado profanado é fechar os olhos para o contexto do próprio
versículo, para o seguinte e para o contexto da Lei que Paulo resgatou no texto. Paulo fala sobre um conjunto de coisas similares: “...comida e
bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados”. Todas estas coisas, diz
ele: “eram sombra”. Essa afirmação aponta para algo que existia em comum
com todas estas coisas. Paulo está falando do conjunto cerimonial entregue e
praticado pelos judeus e que era aceito como prática ordenada por Deus aos
Israelitas. E, se os sábados ditos aqui fossem sábados profanados, o mesmo se
deveria dizer da "...comida, bebida, festas, lua nova...”.
O autor de Hebreus fala da Lei
cerimonial como sombra no mesmo sentido de Paulo: “Ora, visto que a lei tem
sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode
tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano,
perpetuamente, eles oferecem.” (Hebreus 10.1). Em momento algum no Antigo ou Novo Testamento, a Lei, fossem os sacrifícios, festas, lua nova ou os
sábados, poderia ou pode “tornar perfeitos os ofertantes”. A razão disso é que se
tratavam de mero cerimonialismo judaico que apontava para a obra suficiente de
Cristo, o Senhor. Voltar ao cerimonialismo é desprezar a suficiência da obra de
Cristo, é desprezar a afirmação restante de Paulo em Colossenses 2.17: “porém
o corpo é de Cristo.”
Ao dispor lado a lado “dia de
festa, ou lua nova, ou sábados”, Paulo está evocando o cerimonialismo
descrito em múltiplos textos do AT, como em Levítico 23.1-44. Quero me deter
apenas ao que Moisés apontou sobre quais seriam estas festas: “Disse o SENHOR a
Moisés: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: As festas fixas do SENHOR, que
proclamareis, serão santas convocações; são estas as minhas festas.”
Veja que não há uma descrição nesse
versículo sobre quais seriam estas festas, mas ele passa a descrever nos
versículos seguintes, do 3 ao 44. A primeira festa é definida no versículo 3: “o
Sábado”. As outras são descritas posteriormente: a Páscoa, as Primícias, o
Pentecostes, o Dia da Expiação e a Festa dos Tabernáculos.
Também precisamos observar que
Paulo utiliza um plural: “sábados” ao invés de sábado, como visto singularmente
no Quarto Mandamento. Ao contrário do princípio do Shabbath que é único –
descanso – a aplicação desse descanso era visto de forma múltipla, plural no
AT, como já tratamos, por exemplo, do sábado que deveria ser guardado pela
terra. Naquele contexto a terra não poderia ser cultivada no sétimo ano, após um período de seis
trabalhados. Daí a designação de sábados, usada por Paulo por se tratar de
variadas aplicações do princípio do descanso em situações diversas.
A autoridade apostólica não residia nos apóstolos em si mesmos. Paulo deixa claro que sua competência e poder para ministrar não vinham de mérito próprio, mas eram delegados por Cristo e sustentados pelo Espírito Santo. Ele mesmo afirma:
·
2 Coríntios 3.5 “Não que sejamos competentes
por nós mesmos para pensar algo como vindo de nós mesmos, mas a nossa
competência vem de Deus.”
·
2 Coríntios 10.8 “Pois, se ousamos nos
gloriar, não é para vos humilhar, mas para trazer à vossa lembrança a medida da
autoridade que Deus nos deu para edificar, e não para vos destruir.”
·
1 Coríntios 2.4-5 “A minha palavra e a minha
pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em
demonstração de espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse na
sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.”
Portanto, qualquer autoridade
apostólica não dependia da pessoa em si, mas era fruto da delegação de Cristo para que a obra da evangelização e edificação da igreja fosse conduzida segundo
a vontade e poder de Deus.
Ao falar desse ponto, alguns
argumentam que os apóstolos guardavam o “sábado”, conforme o judaísmo, baseando-se
em quatro textos de Atos: 13.14, 13:42; 13:44 e 16:13. Apesar de serem
referências distintas de idas dos apóstolos à sinagogas em dia de sábado,
não podemos ser inocentes em afirmar que eles estariam guardando o sábado
judaico nessas ocasiões.
Nessa afirmação que fazem, dizem
que os apóstolos iam às sinagogas cultuar conforme a prescrição do Quarto
Mandamento. Trata-se, aqui, de um argumento vazio, desprovido de fundamento
teológico e bíblico.
Teologicamente, os apóstolos não
tinham nenhuma razão para cultuar a Deus em uma sinagoga juntamente com ímpios.
Sim, todo aquele que não recebeu e não confessou a Cristo como Senhor e não admite
sua ressurreição a Palavra o descarta como crente, mas o define como ímpio.
Reiteradamente, Cristo tratou a judeus com ímpios, não de forma generalizada, mas apenas aqueles que não criam no Seu nome. “Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram: O segundo. Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no reino de Deus... 43 Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos.” (Mateus 21:31,43). Outros textos asseveram o mesmo:
· João 3:18 “Quem nele crê não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não creu no nome do unigênito Filho de Deus.”
Biblicamente, eles tinham um
propósito em mente que havia sido determinado por Cristo logo após sua
ressurreição: “...mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito
Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e
Samaria e até aos confins da terra.” (Atos 1:8). O propósito, não era
cultuar, mas divulgar o evangelho primeiramente no contexto judaico. Eles iam à
sinagoga em dia de sábado como uma estratégia evangelística. Os apóstolos, por serem judeus, sabiam que o dia de culto guardado por aqueles que ainda não conheciam o
evangelho, era o sábado e num lugar específico, a sinagoga.
Mas, então, de onde os apóstolos tiraram a ideia de mudar o dia de culto, o dia da Assembleia Solene do sábado para o domingo? De uma nova revelação? Claro que não, se bem que tinham autoridade para isso se nada mais pudéssemos dizer acerca desse assunto. Mas não é a questão. Foi tanto da afirmação quanto da prática de Cristo. Da afirmação quando disse: “o Filho do Homem é o Senhor do sábado”. Mas, e a prática?
Para falarmos da prática de Cristo
não estamos, nesse momento, nos referindo às vezes em que Cristo profanou o
sábado segundo a avaliação dos fariseus. “O Filho do Homem é Senhor do
sábado...” aponta para Cristo como autoridade final do sábado. Com esta
afirmação, literalmente, Cristo está se sobrepondo ao estabelecimento do Shabath
no Quarto Mandamento. Cristo está afirmando: “O Filho do Homem é Senhor do
Shabbath”. O Shabbath é fundamentado na autoridade de Cristo e não num dia
específico da semana dado no contexto judaico.
Tendo enfatizado isso, Cristo, de fato, alterou o dia do Shabbath. Cristo, com sua prática, estabeleceu novo dia de
culto não apenas nos momentos em que Ele foi rechaçado pelos judeus, mas em prática vista após a sua morte e ressurreição. Na última ceia Cristo fez uma afirmação relevante sobre isso.
“E disse-lhes: Tenho desejado
ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes do meu sofrimento. Pois vos digo
que nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus.” (Lucas
22:15-16).
Duas questões interessantes, uma delas pertinente ao nosso tema. A primeira, não tão pertinente, é o fato de a Páscoa judaica ser guardada no dia 14 do mês de Nisã, segundo o calendário hebraico, que corresponde à véspera da Páscoa (ou “Pré-Páscoa”), antes do início do pão ázimo (Êxodo 12:6, 18). O dia 14 de Nisã não correspondia, necessariamente, a um dia fixo da semana (domingo, sexta, etc.), porque o calendário judaico era lunar.
A celebração incluía o sacrifício
do cordeiro pascal ao entardecer e a refeição ritual com pão sem fermento. A
festa se estendia depois com os sete dias de pães ázimos (Êxodo 12:15-20). No
contexto do Novo Testamento, isso significa que a crucificação de Jesus
coincidiu com o 14 de Nisã, a véspera da Páscoa, que naquele ano caiu na
sexta-feira, segundo o relato nos evangelhos sinóticos.
No texto de Lucas, Cristo afirma que a Ceia somente seria celebrada novamente quando o Reino de Deus já tivesse sido estabelecido: “nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus.”. E, quando de fato isso aconteceu? Quero ir um pouco além do argumento de que os apóstolos passaram a guardar o domingo como sendo o Shabbath cristão por ter sido o dia da ressurreição de Cristo, observando os acontecimentos daquele dia. Aqui, abrimos um parênteses para falar sobre uma teoria, extrabíblica, sobre um Reino futuro de Cristo, milenar. Ao contrário dessa teoria, o Reino se estabeleceu quando essas palavras de Cristo se cumpriram.
Lucas, ao escrever sobre o dia da
ressurreição de Cristo, afirmou: “Naquele mesmo dia, dois deles estavam de
caminho para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios.”
(Lucas 24:13). Quando ele diz, “Naquele mesmo dia,” Lucas se refere ao
dia em que ele havia mencionado em Lucas 24:1: “...no primeiro dia da
semana, alta madrugada, foram elas ao túmulo...”. Está claro aqui a fala de
Lucas: “primeiro dia da semana” portanto era domingo.
No caminhar juntos aos discípulos
em direção a Emaús, Cristo fez menção de não seguir com eles, mas eles
insistiram e o que vemos é a prática de Cristo determinando um dia.
“E, começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras. Quando se aproximavam da aldeia para onde iam, fez ele menção de passar adiante. Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque é tarde, e o dia já declina. E entrou para ficar com eles. E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; então, se lhes abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles . E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras?... 35 Então, os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido no partir do pão.” (Lucas 24.27-32, 35).
Naquele dia, Cristo pregou a Palavra (expôs a Escritura) e realizou a ceia (o partir do pão) com os discípulos. Nesse mesmo dia, cumpriu-se a Palavra de Cristo dada na última ceia. O Reino estava estabelecido e a Igreja, que teve como seu protótipo a nação de Israel, ali teria seu início. Na prática, Cristo mostrou que, de fato, o Filho do Homem é o Senhor do sábado. Por isso o domingo passou a ser conhecido e chamado de “Dia do Senhor”, pois repousa na autoridade de Cristo, e não na caducidade da Lei cerimonial.
Conclusão: o Shabath e o Domingo
como princípio eterno
O exemplo do descanso da terra
(Êxodo 23:10-11; Levítico 25:2-4) mostra que o sábado não é apenas um ritual
religioso, mas um princípio de ordem divina aplicado à criação. Os ciclos de
trabalho e descanso garantem sustento, cuidado e manutenção da vida. Assim, o
descanso humano semanal é um reflexo microcósmico desse princípio cósmico, que
transcende calendários, nomes ou culturas.
Enquanto o domingo ou “dies
dominica” recebeu um nome cristianizado em algumas línguas, e Saturday
manteve sua raiz romana, o Shabath bíblico permanece inalterável em sua
função e significado. É descanso ordenado por Deus, não costume cultural; e
Cristo determinou que fosse celebrado no domingo, com Seu ensino e prática. Os
apóstolos e a igreja primitiva entenderam e acataram esse princípio, guardando
o domingo para culto, Ceia e pregação da Palavra.
· Gênesis 2: Deus descansou após a criação, estabelecendo o padrão do Shabbath.
· Êxodo 31:13-17: O Shabath é um sinal perpétuo entre Deus e Seu povo, lembrando-os de que Ele é o Senhor.
· Colossenses 2:16-17: O descanso do Shabbath é sombra das coisas vindouras; Cristo é a realidade plena.
Em síntese:
· O Shabath é princípio eterno, não limitado a um dia da semana.
· Cristo, como Senhor do Shabbath, estabeleceu a prática do descanso no domingo, integrando culto, Ceia e ensino da Palavra.
· A igreja primitiva seguiu esse princípio, não por costume cultural ou imposição legalista, mas pela autoridade de Cristo e pela prática dos apóstolos.
· O nome ou idioma é irrelevante; o que importa é o propósito divino do descanso e da consagração, perpetuado na história da igreja como manifestação do Shabbath.
O domingo, portanto, não é um “dia de lazer” ou um costume histórico; tao pouco o homem está livre de qualquer obrigação pactual, cultual; ele é a continuação viva do Shabath,
um sinal da ordem divina e da aliança de Deus com Seu povo, cumprido plenamente
em Cristo e celebrado com fé e obediência na igreja.
Com tudo isso, o perfeito Shabbath ainda não se consumou. O sábado estava para o israelita, assim como o domingo está para a igreja. Nesses dois contextos jazem imperfeições devido à presença do pecado. Da mesma forma que os judeus lutavam por cumprir o Shabbath no sábado, nós hoje lutamos por cumprir o mesmo Shabbath no domingo. Essa perfeição só se tornará realidade no Dia Eterno, o eterno Shabbath quando finalmente estaremos juntos com o "Filho do Homem, o Senhor do Sábado" conforme dito pelo autor de Hebreus: "Ora, se Josué lhes houvesse dado descanso, não falaria, posteriormente, a respeito de outro dia. Portanto, resta um repouso para o povo de Deus." (Hebreus 4:8-9)