sexta-feira, 19 de setembro de 2025

ESTÁ ESCRITO: Continuidade das Escrituras e a Base para a Nova Aliança

     A leitura atenta do Novo Testamento revela que ele está profundamente enraizado nas Escrituras do Antigo Testamento. Um levantamento detalhado evidencia que, na versão ARA, mais de 91 ocorrências distintas da expressão “está escrito” e de suas variações são encontradas, distribuídas por todos os evangelhos, Atos, cartas paulinas e epístolas gerais. Quando somadas às citações diretas e às inúmeras alusões, estimadas em cerca de 4.400 referências no total, percebemos que o NT não apenas cita o AT, mas o interpreta, cumpre e expande, estabelecendo um diálogo contínuo entre promessas, preceitos e tipologias.

    Essa observação revela um padrão sistemático e deliberado. O uso das Escrituras hebraicas no NT não é acidental nem decorativo; ele evidencia a coesão histórica e teológica da narrativa bíblica. Cada citação ou alusão serve a propósitos específicos: confirmar o cumprimento profético, instruir sobre a justiça e a salvação de Deus, exortar moralmente a comunidade de crentes ou oferecer argumentos apologéticos diante de contestações. Em Apocalipse, por exemplo, o uso de alusões e símbolos do AT demonstra como o plano divino se desdobra de forma tipológica e escatológica, reunindo moral, culto e história em uma visão única e progressiva.

    A análise estatística não se limita a quantificar ocorrências; ela ilumina o padrão de continuidade das alianças. A autoridade do AT permanece intacta, agora reinterpretada à luz de Cristo, que inaugura a Nova Aliança no seu sangue. Essa Nova Aliança não representa ruptura, mas revelação da essência espiritual da Lei. Assim, a história da redenção se apresenta como um plano progressivo e coerente, que une passado, presente e futuro, mostrando que cada preceito, promessa e profecia do AT encontra seu cumprimento em Cristo e na comunidade de crentes que dele deriva.

    Esta investigação propõe, portanto, não apenas um levantamento das referências, mas uma leitura integrativa, na qual estatística, exegese e teologia do pacto convergem para demonstrar que o Novo Testamento é, antes de tudo, a interpretação viva e o cumprimento da Palavra de Deus revelada nas Escrituras hebraicas. 

    Esse reconhecimento, porém, só se torna legítimo quando acompanhado de uma hermenêutica responsável. Não basta uma leitura superficial do texto grego ou a consulta a interlineares para que se alcance a profundidade da revelação bíblica. Tais tentativas, comuns desde os primeiros séculos nos discursos gnósticos e antinomianos e hoje retomadas por grupos com a mesma segmentação teológica e outras seitas modernas, reduzem a Escritura a fragmentos linguísticos isolados, ignorando o seu contexto histórico, literário e teológico. 

    A verdadeira exegese, ao contrário, exige a abordagem histórico-gramatical, que não apenas respeita a língua original em sua gramática, mas também a situa na história concreta de Israel, na progressividade da revelação e no desígnio de Deus consumado em Cristo. É esta metodologia que impede a distorção do texto, pois não se limita ao som e à forma das palavras, mas busca o sentido que o autor inspirado quis comunicar. Somente assim é possível reconhecer que o Novo Testamento não cria novos conceitos arbitrários, mas interpreta e cumpre as Escrituras hebraicas em sua unidade. 

    A partir desta base, o presente estudo se debruçará sobre o significado da Nova Aliança, a internalização da Lei e a continuidade do plano de Deus, culminando na visão escatológica apresentada em Apocalipse, onde a plenitude das promessas se manifesta de forma simbólica, ética e espiritual.

 

1.       Para iniciarmos esta exposição, faremos uso de estatísticas a partir da expressão “Está escrito”. Para tanto, vejamos o seguinte quadro onde ocorre o aparecimento da expressão no NT.

 

Livro

Referências

Mateus

2:5; 4:4,6,7,10; 11:10; 21:13; 26:24,31

Marcos

1:2; 7:6; 9:12,13; 11:17; 14:21,27

Lucas

2:23; 3:4; 4:4,8,10,12,17; 7:27; 10:26; 18:31; 19:46; 20:17; 21:22; 22:37; 24:44,46

João

6:31,45; 8:17; 10:34; 12:14; 15:25

Atos

1:20; 7:42; 15:15; 23:5

Romanos

1:17; 2:24; 3:4,10; 4:17; 8:36; 9:13,33; 10:15; 11:8,26; 12:19; 14:11; 15:3,9,21

1 Coríntios

1:19,31; 2:9; 3:19; 9:9; 10:7; 14:21; 15:45

2 Coríntios

8:15; 9:9

Gálatas

3:10,13; 4:22,27

Hebreus

10:7; 10:16

 

    Especificamente, a expressão “está escrito” aparece 75 vezes na versão ARA do NT. Contudo, expressões similares a “Está escrito” ocorrem rotineiramente no NT. Na ARA, podemos encontrar várias fórmulas parecidas, entre elas: 

·        “para que se cumprisse o que fora dito” (Mt 1:22; 2:15, 17, 23; 4:14; 8:17; 12:17; 13:35; 21:4; 26:56; Jo 12:38; 15:25; 18:9, 32; 19:24, 36).

·        “segundo o que foi dito” (Mt 2:5).

·        “conforme disse o profeta” (Mt 2:23).

·        “para que se cumprisse a Escritura” (Jo 13:18; 17:12; 19:24, 28, 36).

·        “segundo o que está escrito” (variação do mesmo).

·        “como disse” / “como falou” (Lc 1:55, 70; At 2:16).

·        “o que o Espírito Santo disse” (At 1:16; Hb 3:7; 10:15).

·        “está na Lei” ou “está na Lei escrito” (Jo 8:17; 1Co 9:8-9; 14:21).

 

     Todas as ocorrências com suas variações da expressão “está escrito” no NT – ARA

Livro

Referências

Mateus

1:22; 2:5,15,17,23; 4:4,6,7,10,14; 8:17; 11:10; 12:17; 13:35; 21:4,13; 26:24,31,56

Marcos

1:2; 7:6; 9:12,13; 11:17; 14:21,27

Lucas

1:55,70; 2:23; 3:4; 4:4,8,10,12,17; 7:27; 10:26; 18:31; 19:46; 20:17; 21:22; 22:37; 24:44,46

João

6:31,45; 8:17; 10:34; 12:14,38; 13:18; 15:25; 17:12; 18:9,32; 19:24,28,36

Atos

1:16,20; 2:16; 7:42; 15:15; 23:5

Romanos

1:17; 2:24; 3:4,10; 4:17; 8:36; 9:13,33; 10:15; 11:8,26; 12:19; 14:11; 15:3,9,21

1 Coríntios

1:19,31; 2:9; 3:19; 9:8–9; 10:7; 14:21; 15:45

2 Coríntios

8:15; 9:9

Gálatas

3:10,13; 4:22,27

Hebreus

3:7; 10:7,15,16

 

Total por livro: 

·        Mateus: 18 ocorrências

·        Marcos: 7 ocorrências

·        Lucas: 17 ocorrências

·        João: 13 ocorrências

·        Atos: 6 ocorrências

·        Romanos: 13 ocorrências

·        1 Coríntios: 7 ocorrências

·        2 Coríntios: 2 ocorrências

·        Gálatas: 4 ocorrências

·        Hebreus: 4 ocorrências

 Total geral: 91 ocorrências distintas no NT da ARA.

     Além destas ocorrências explícitas, precisamos considerar outras questões. As citações diretas, indiretas e alusões do Antigo Testamento no Novo Testamento, incluindo o Apocalipse. Uma fonte amplamente reconhecida para esse tipo de análise é a ferramenta online da Blue Letter Bible, que oferece uma lista detalhada de passagens no Novo Testamento que citam ou fazem alusão ao Antigo Testamento.

 De acordo com a Blue Letter Bible, temos as seguintes estimativas gerais: 

  • ·        Citações diretas: Há cerca de 283 citações diretas do Antigo Testamento no Novo Testamento.
  • ·     Alusões: O número de alusões varia conforme o critério adotado. Estudos sugerem que o Novo Testamento contém entre 4.000 e 5.000 alusões ao Antigo Testamento.
  • ·      Apocalipse: O livro de Apocalipse é particularmente rico em referências ao Antigo Testamento, com estimativas indicando que ele contém mais de 500 alusões.

 

Para tornar mais claro, façamos as seguintes considerações:

  1.  As citações diretas são aquelas em que o texto do Antigo Testamento é reproduzido literalmente no Novo Testamento.
  2.  As alusões são referências indiretas, em que o Novo Testamento faz referência ao Antigo Testamento sem citar o texto de forma literal.
  3.  A contagem de alusões pode variar dependendo dos critérios utilizados para identificá-las.

 Tomando como estimativa mínima, de 4.000 alusões do AT no NT, as 283 citações diretas e somando as referências com a expressão e suas similares de “...está escrito”; temos um conjunto de mais de 4.400 referências do AT no NT. Mas, para uma maior visualização, tomemos outra estatística.

O Novo Testamento possui 7.957 versículos na maioria das versões protestantes padrão, incluindo a ARA. Essa contagem de versículos é distribuída entre os livros da seguinte forma aproximada: 

Livro

Versículos

Mateus

1.071

Marcos

678

Lucas

1.151

João

879

Atos

1.007

Romanos

433

1 Coríntios

437

2 Coríntios

257

Gálatas

149

Efésios

155

Filipenses

104

Colossenses

95

1 Tessalonicenses

89

2 Tessalonicenses

47

1 Timóteo

113

2 Timóteo

83

Tito

46

Filemom

25

Hebreus

303

Tiago

108

1 Pedro

105

2 Pedro

61

1 João

105

2 João

13

3 João

14

Judas

25

Apocalipse

404

Total de versículos

7.957

     Por aqui, então, começamos a entender como a estatística se torna relevante, pois vemos um padrão no NT. Este padrão nos mostra a finalidade pela qual estas referências, citações, alusões foram feitas. Desta maneira, podemos qualificar o propósito teológico ou funcional dessas citações/alusões no NT. Observando estudos acadêmicos e exegéticos sobre o uso do AT no NT (incluindo Apocalipse), podemos classificar essas ocorrências em algumas categorias principais:

 

1️. Cumprimento profético / fundamentação histórica

Objetivo: Mostrar que eventos do NT ocorreram como anunciados pelos profetas do AT, legitimando Jesus e a nova aliança.

Exemplos:

·        Mateus 1:22; 2:15,17,23: nascimento, fuga para o Egito, morada em Nazaré.

·        Lucas 24:44–46: Jesus explica que sua morte e ressurreição cumprem as Escrituras.

·        João 19:36: “não lhe quebrarão os ossos” (cumprimento de Salmo/Êxodo).

 

2. Ensino doutrinário / teológico

Objetivo: Usar o AT para fundamentar princípios doutrinários, instruir os crentes ou explicar a salvação e a justiça de Deus.

Exemplos:

·        Romanos 1:17; 3:10; 4:17: justificação pela fé fundamentada em citações de Gênesis e Salmos.

·        1 Coríntios 10:7; 15:45: exortações morais ou cristológicas.

·        Hebreus 10:16: aplicação do novo pacto em Cristo baseado em Jeremias.

 

3. Exortação moral / ética prática

Objetivo: Orientar o comportamento dos crentes com base em exemplos do AT.

Exemplos:

·        1 Coríntios 9:9; 14:21; princípios sobre direitos, disciplina e linguagem na igreja.

·        Romanos 12:19: “não vos vingueis” fundamentado em Levítico.

 

4. Defesa apologética / argumentação em debate

Objetivo: Usar a Escritura para responder a questionamentos ou mostrar coerência histórica.

Exemplos:

·        João 10:34: defesa da divindade de Cristo citando Salmo 82:6.

·        Atos 2:16–21: Pedro interpreta a Joel para explicar o ocorrido no evento de Pentecostes.

 

5. Simbolismo / literatura profética

Objetivo: Fazer referência a imagens, símbolos ou tipos do AT para enriquecer a narrativa ou visão profética.

Exemplos:

·        Apocalipse 1:7; 5:5; 17:14: uso de figuras do AT (Salmos, Daniel, Isaías) para moldar visão escatológica.

·        Apocalipse 12–20: alusões a Leviatã, arco-íris, selos e trombetas do AT.

 

Observações importantes: 

1.       Uma mesma ocorrência pode pertencer a mais de uma categoria. Ex.: Mateus 1:22 é cumprimento profético e fundamentação teológica.

2.       A expressão “está escrito”, com suas variações, geralmente aparece em cumprimento profético ou ensino doutrinário, reforçando a autoridade das Escrituras.

3.       As alusões em Apocalipse tendem mais a simbolismo e literatura profética, mas também sustentam ensino doutrinário e exortação moral.

 

2.       “Está escrito”: A Continuidade das Alianças no Novo Testamento

     A expressão “está escrito”, tão recorrente no Novo Testamento, não é uma simples formulação literária ou recurso de estilo. Ela revela a profunda consciência dos autores do NT de que a história que narram, os ensinos que transmitem e as visões que apresentam são, de fato, a realização de um desígnio divino que começou nas Escrituras hebraicas. Vimos que, na versão ARA, essa expressão aparece 75 vezes, enquanto suas variações e equivalentes, tais como: “para que se cumprisse o que fora dito”, “segundo o que foi dito”, “como disse o profeta” ou “para que se cumprisse a Escritura”, elevam o total para 91 ocorrências distintas, distribuídas por quase todos os livros do Novo Testamento.

    Essa frequência não é meramente estatística. Ela sinaliza que os evangelistas, apóstolos e escritores paulinos não compreendiam o Antigo Testamento como um conjunto de textos independentes ou antiquados, mas como uma narrativa viva e ativa, cujas palavras projetavam-se no tempo e no cumprimento em Cristo. Cada referência, direta ou indireta, funciona como uma ponte entre promessas antigas e sua realização na história de Jesus e na experiência da Igreja primitiva.

 

3. Cumprimento profético e fundamentação histórica

     O uso da expressão “está escrito” aparece com mais intensidade quando o autor do NT deseja situar eventos históricos na linha profética do Antigo Testamento. Mateus, por exemplo, organiza a narrativa da infância de Jesus com citações estratégicas: Mateus 1:22 destaca o nascimento virginal como cumprimento de profecia; Mateus 2:15 menciona a fuga para o Egito; 2:23 a morada em Nazaré, sempre introduzidas com fórmulas que sublinham a conexão com o que fora dito por Deus por meio de seus profetas. De modo semelhante, Lucas 24:44–46 contextualiza a morte e ressurreição de Cristo, mostrando que todos os acontecimentos centrais da paixão já haviam sido preanunciados. João 19:36 cita literalmente a Escritura para enfatizar a execução precisa do plano divino.

    Esses exemplos revelam que a narrativa do Novo Testamento não pretende apenas registrar fatos, mas inscrevê-los na história da salvação, mostrando que Deus atua de maneira contínua, coerente e previsível, cumprindo promessas feitas séculos antes. As citações diretas funcionam, portanto, como um fio condutor entre a revelação antiga e o acontecimento histórico novo, reforçando a legitimidade messiânica de Jesus e a autenticidade de sua missão.

 

4. Ensino doutrinário e teológico

     Além de situar eventos históricos, as citações do Antigo Testamento no Novo também cumprem uma função didática e doutrinária. Elas não servem apenas para provar um fato ocorrido, mas para interpretar a realidade à luz do propósito divino, oferecendo ao leitor uma compreensão teológica da vida, morte e ressurreição de Cristo.

    Romanos 1:17 e 3:10 exemplificam como a justificação pela fé é fundamentada no Antigo Testamento, não como uma abstração teórica, mas como uma continuidade de princípios divinos. Paulo recorre a Gênesis e aos Salmos para demonstrar que a fé não é uma inovação humana, mas a própria forma de viver esperançosa que Deus desde sempre desejou. De maneira similar, 1 Coríntios 10:7 e 15:45 utilizam referências do AT para ensinar sobre a disciplina, a santidade e a natureza humana, sempre com o objetivo de informar e moldar a prática cristã. Em Hebreus 10:16, a citação de Jeremias sobre a Nova Aliança serve para explicar que a Escritura antiga não é substituída ou anulada, mas cumprida e interiorizada em Cristo.

    A função doutrinária dessas citações evidencia um princípio essencial: o Novo Testamento não cria novas doutrinas de forma isolada, mas interpreta, aplica e completa o que já havia sido declarado no AT. A autoridade de “toda a Escritura” (2Tm 3.16) é, assim, reforçada, e os crentes são chamados a compreender a fé como continuidade, não ruptura.

 

5. Exortação moral e ética prática

     Muitas citações do AT no NT têm um caráter prático, orientando a conduta ética dos seguidores de Cristo. São textos que conectam a moralidade bíblica à vida diária da comunidade cristã, mostrando que a Lei de Deus permanece normativa e vigente, mas agora compreendida à luz do evangelho.

    1 Coríntios 9:9 e 14:21, por exemplo, instruem sobre disciplina e direitos dentro da comunidade. Romanos 12:19 lembra: “não vos vingueis”, retomando princípios de Levítico. Essas passagens demonstram que a ética bíblica não é uma invenção humana nem uma aplicação esporádica, mas uma expressão contínua da vontade divina, que atravessa séculos e culturas, moldando a vida do crente em harmonia com o plano de Deus.

 

6. Defesa apologética e argumentação

     Além de ensinar, as citações também cumprem papel defensivo e apologético, sustentando a fé diante de questionamentos e oferecendo coerência interna à narrativa cristã. João 10:34, por exemplo, recorre ao Salmo 82:6 para justificar a afirmação de Cristo sobre sua identidade divina. Em Atos 2:16–21, Pedro interpreta Joel para explicar o Pentecostes, demonstrando que os fenômenos que se manifestam na comunidade não são acidentes, mas o cumprimento de promessas antigas.

    Aqui, a função das Escrituras é provar e sustentar, mostrando que a fé cristã é historicamente enraizada e intelectualmente consistente, fundamentada em uma tradição que remonta aos patriarcas, profetas e reis de Israel.

 

7. Simbolismo e literatura profética: o eco do Antigo Testamento em Apocalipse

     O uso de alusões ao Antigo Testamento no Novo se torna mais complexo e literariamente sofisticado no livro de Apocalipse. Ali, o autor não apenas cita ou cumpre profecias; ele tece imagens e símbolos que rememoram a narrativa e a teologia do AT, oferecendo uma visão escatológica da redenção. Estima-se que Apocalipse contenha mais de 500 alusões ao AT, desde figuras como Leviatã até imagens de arco-íris, selos e trombetas, recuperando a linguagem poética e apocalíptica de Isaías, Daniel e Salmos.

    Cada referência funciona em múltiplos níveis. Por exemplo, Apocalipse 1:7 evoca o Salmo 97 e Zacarias 12 para apresentar a vinda gloriosa de Cristo; Apocalipse 5:5, citando temas messiânicos do AT, conecta o trono de Deus e a redenção do povo à promessa feita aos patriarcas. Estas alusões não são apenas decorativas ou ornamentais: são instrumentos que reforçam a continuidade das alianças, lembrando que o desígnio de Deus não se interrompe com a chegada da Nova Aliança, mas se cumpre integralmente em Cristo e se projeta no fim dos tempos.

 

8. Continuidade das alianças

8.1 O que é e como é estruturada uma aliança.

    A noção de aliança no contexto bíblico transcende contratos humanos ou acordos meramente formais; ela é a expressão da vontade de Deus em estabelecer uma relação ordenada e compromissada com a humanidade. Uma aliança, conforme o Antigo Testamento demonstra, não se limita a promessas ou obrigações isoladas, mas articula direitos e deveres de maneira integral, combinando promessa, compromisso e consequência. Em Gênesis 9:9-11, por exemplo, Deus estabelece uma aliança com Noé, prometendo nunca mais destruir a terra com água, enquanto os termos dessa aliança implicam uma responsabilidade moral do ser humano sobre a criação. Aqui, a aliança combina promessa divina, reconhecimento da condição humana e normas de conduta: mesmo que implícita, já há uma estrutura tripartida que se repetirá em outras alianças.

    A aliança abraâmica (Gn 12:1-3; 15:18) amplia essa estrutura. Deus promete bênçãos à descendência de Abraão e, por meio dela, a todas as nações, enquanto Abraão e sua posteridade assumem a responsabilidade de caminhar em fidelidade. A promessa e o compromisso de fidelidade se articulam com sinais visíveis, como a circuncisão (Gn 17:10-14), demonstrando que a aliança não é apenas verbal, mas simbólica e incorporada à vida prática. Esse padrão se repete com a aliança mosaica, que apresenta uma estrutura tripartida clara: a dimensão moral, que expressa o caráter de Deus e a conduta esperada do povo (Êx 20:1-21); a dimensão civil, que regula a vida comunitária e a justiça social em Israel (Êx 21-23); e a dimensão cerimonial, que orienta a adoração e o culto, apontando para a santidade e para o futuro cumprimento em Cristo (Lv 1-7; Hb 9:11-14).

    O Novo Testamento revela que essas alianças não são descartáveis, mas prefigurativas e progressivas, convergindo na Nova Aliança selada no sangue de Cristo. Hebreus 8:6-13 mostra que a Nova Aliança não redefine a Lei de Deus, mas a cumpre plenamente, especialmente em sua dimensão moral, internalizando os preceitos no coração dos redimidos. Assim, a estrutura da aliança: promessa, compromisso e consequência, permanece; mas o seu cumprimento integral se dá em Cristo, que internaliza, espiritualiza e universaliza o propósito das promessas e normas das alianças anteriores. A obediência externa, o culto e a disciplina civil se tornam expressões transformadas pela ação do Espírito, enquanto a essência moral da Lei continua a regular a vida do crente de forma permanente.

    Podemos, portanto, discernir que toda aliança bíblica combina três elementos estruturais essenciais: a promessa de Deus, que anuncia a graça, a bênção e o propósito divino; a obrigação ou compromisso do ser humano, que assume responder à vontade de Deus em fidelidade; e as consequências, que podem ser bênçãos, proteção, juízo ou correção, sempre articuladas à fidelidade ou à transgressão. Essa estrutura permite compreender cada pacto como um fio de um mesmo tecido teológico: histórico, progressivo e coerente, culminando na Nova Aliança, onde todas as promessas se cumprem e todos os preceitos da Lei encontram seu sentido pleno em Cristo e no seu corpo, a Igreja

 

8.2 A Progressividade da revelação

    Ao analisarmos as citações diretas, indiretas e alusões do AT no NT, torna-se evidente que o Novo Testamento não rompe com a tradição do Antigo; antes, ela é reescrita e realizada de maneira cumulativa e progressiva. As promessas feitas aos patriarcas, os preceitos cerimoniais e morais da Lei, bem como as profecias messiânicas encontram em Cristo seu cumprimento pleno.

    As expressões “está escrito” e suas variantes funcionam como marcadores de autoridade e continuidade: não apenas legitimam fatos históricos, mas conectam teologia, ética e escatologia, consolidando a narrativa da redenção como um todo coerente. Cada referência direta ou alusão simbólica reforça a ideia de que Deus cumpre suas promessas de geração em geração, mantendo a unidade da história da salvação, desde a primeira aliança com Abraão até a consumação em Cristo.

 

9. O ponto de partida.

     A reflexão sobre a continuidade das alianças encontra seu ponto culminante nas palavras de Cristo durante a Última Ceia: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue” (Lc 22:20; cf. 1Co 11:25). A expressão “Nova Aliança” exige uma leitura cuidadosa, considerando o sentido histórico e gramatical do termo grego καινή διαθήκη (kainē diathēkē). O adjetivo καινή não denota mera substituição temporal, mas uma qualidade radicalmente transformadora. Trata-se de uma aliança que, embora enraizada na aliança antiga, apresenta novidade em forma e eficácia, inaugurada pelo derramamento do sangue de Cristo, mas mantendo sua essência que é permanente (Cf. 1 Pe 1.23).

    No contexto do Antigo Testamento, o conceito de aliança (berith) envolve um compromisso legal e relacional entre Deus e seu povo, marcado por promessas, obediência e bênçãos condicionais. A aliança mosaica era caracterizada pela lei escrita, externa e muitas vezes ineficaz em gerar obediência interior, conforme demonstram as críticas dos profetas e a exortação de Jeremias 31:31–34. Cristo, ao falar da nova aliança, não cria um tratado completamente desvinculado do passado, mas cumpre e transcende a antiga aliança, oferecendo o que esta não podia: uma obediência internalizada, fruto do Espírito, capaz de transformar a vida do homem de dentro para fora (Cf. Hb 8.10).

    A gramática grega reforça este ponto. Enquanto παλαιά (palaiá) designa algo antigo, obsoleto ou ultrapassado, καινή indica algo qualitativamente novo, não apenas cronologicamente posterior. Assim, a Nova Aliança não anula a antiga em termos de revelação divina, mas a renova, aperfeiçoa e torna plenamente eficaz na redenção que se realiza em Cristo. Esta exposição é consistente com o quadro de Hebreus 8–10, onde o autor explica que a aliança de Cristo se fundamenta em promessas melhores, mediadas por um sumo sacerdote perfeito e asseguradas pelo seu sangue, tornando o acesso a Deus imediato e transformador para aqueles que creem.

    Sob a perspectiva da teologia do pacto, podemos perceber que esta “Nova Aliança” mantém a continuidade do desígnio divino iniciado com Abraão e reafirmado na Lei de Moisés, mas introduz novidade substancial: agora, a Lei não está apenas gravada em tábuas de pedra, mas escrita nos corações pelo Espírito Santo (cf. Jr 31:33; 2Co 3:3; Hb 8.10). O pacto histórico do Antigo Testamento encontra, em Cristo, a sua plenitude: o que antes era sombra e tipo se torna realidade e cumprimento, e a fidelidade de Deus se manifesta de forma irrevogável e eficaz, garantindo a salvação de todos aqueles que se unem a Ele pela fé.

  

9.1. O não rompimento com a essência da Lei.

     Ao aprofundarmos a compreensão da Nova Aliança, torna-se evidente que sua inauguração não representa uma ruptura arbitrária com a aliança mosaica, mas uma revelação plena da sua essência. Um dos equívocos centrais dos fariseus foi tratar a Lei de Moisés como um conjunto de normas meramente civis ou externas, limitando sua aplicação a observâncias ritualísticas e jurídicas, sem perceber o alcance espiritual que ela possuía. Cristo, ao estabelecer a Nova Aliança, evidencia que a Lei nunca foi apenas externa: ela é, em sua raiz, espiritual, direcionada à transformação do coração humano.

    A exegese histórica e gramatical reforça essa visão. No Antigo Testamento, a Lei possui três dimensões interligadas:

 

·        Moral/espiritual: princípios que expressam a vontade ética de Deus, como os Dez Mandamentos, que orientam a relação do homem com Deus e com o próximo.

·        Civil: normas reguladoras da vida comunitária de Israel, incluindo justiça social, propriedade e direito penal.

·        Cerimonial: ritos, sacrifícios e observâncias que apontam tipologicamente para Cristo e a redenção final.

 

    Os evangelhos mostram que Cristo não aboliu a Lei, mas a revela em sua plenitude, indicando que o seu cumprimento não se dá apenas em atos externos, mas na internalização da vontade de Deus pelo Espírito. Mateus 5:17-20 é paradigmático: Cristo afirma que não veio abolir a Lei, mas cumpri-la, mostrando que o cumprimento pleno se dá não apenas na observância formal, mas no alinhamento do coração humano com a justiça de Deus. O essencial é entender que essa Lei não abolida, não diz respeito aos aspectos civis e cerimoniais, mas ao seu aspecto moral.

    Importante notar que, ao afirmar que não veio abolir a Lei, mas cumpri-la, Cristo não indicou que o cumprimento de sua obra redentora dispensaria os crentes de obedecer a todos os aspectos da Lei. Pelo contrário, Ele mesmo define a essência permanente da Lei ao apresentar as chamadas antíteses: “Ouvistes o que foi dito aos antigos… eu porém vos digo” (Mt 5:21-48). Nelas, Cristo expõe que o verdadeiro cumprimento da Lei não se limita à observância externa de mandamentos civis ou cerimoniais, mas toca a profundidade do coração humano, orientando o agir, o pensar e o desejar.

    Esta essência moral da Lei já estava presente no Antigo Testamento. Em Números 15:39. “E as borlas estarão ali para que, vendo-as, vos lembreis de todos os mandamentos do SENHOR e os cumprais; não seguireis os desejos do vosso coração, nem os dos vossos olhos, após os quais andais adulterando”, Moisés instrui os filhos de Israel a que o uso das franjas nas vestes lhes lembre todos os mandamentos do Senhor, de modo que não se voltem ao coração e ao desejo para o mal. Esta referência serve como fundamento para uma das antíteses de Cristo (Mt 5:21-48), que amplia e aprofunda o preceito: não basta abster-se do ato externo de homicídio ou adultério; é necessário conter a raiva e o desejo no coração. Assim, Cristo evidencia que o cumprimento da Lei se dá tanto no plano externo quanto no interno, revelando e perpetuando a moralidade que sempre foi intenção de Deus, agora aplicada plenamente no contexto da Nova Aliança.

    Essa profundidade moral encontra um eco direto nos ensinamentos de Cristo sobre os dois grandes mandamentos, que sintetizam toda a Lei e os profetas: amar a Deus de todo o coração, alma e mente, e amar o próximo como a si mesmo (Mt 22:37-40). João, em suas cartas, desenvolve esta mesma essência sem introduzir um novo mandamento, mas reiterando o já existente em Cristo: “Não vos dou um novo mandamento, mas um mandamento antigo, que já tendes: que vos ameis uns aos outros” (1Jo 2:7-8). Aqui se evidencia que a moralidade da Lei não é uma série de preceitos fragmentados, mas uma unidade ética e espiritual centrada no amor, que internaliza o princípio da justiça divina e o aplica à vida cotidiana dos crentes. O amor ao próximo, conforme enfatiza João, não é opcional nem apenas externo; é a realização prática do coração da Lei, sendo simultaneamente expressão de fidelidade a Deus e fundamento da vida comunitária. Assim, a Nova Aliança não altera a Lei moral, mas revela sua essência, interna e relacional, mostrando que o cumprimento pleno da Lei se manifesta na prática do amor, tanto para com Deus quanto para com o próximo, de modo que os princípios que guiavam Israel tornam-se agora plenamente realizáveis no coração do crente regenerado pelo Espírito.

    Assim como o segundo grande mandamento sintetiza a Lei na dimensão relacional com o próximo, o primeiro grande mandamento revela a dimensão central da relação do ser humano com Deus. Vimos que Cristo o apresenta em Mateus 22:37-38 como o amor a Deus de todo o coração, alma e mente, princípio que não é substituído nem ampliado em essência, mas plenamente reiterado e aprofundado nas epístolas. Paulo mostra que amar a Deus é inseparável da vida moral e ética do crente: em Romanos 13:8-10, ele demonstra que o amor a Deus se manifesta concretamente no cumprimento da Lei, integrando justiça e devoção; Gálatas 5:14 reforça que toda a Lei se cumpre por este amor. Tiago denomina este princípio de “lei real” (Tg 2:8), evidenciando seu caráter normativo, prático e universal, que orienta tanto a vida individual quanto a comunitária. João, de forma enfática, liga a sinceridade do amor a Deus à prática do amor fraternal: “Se alguém diz: Amo a Deus, e odeia seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4:20-21), mostrando que a obediência ao primeiro mandamento não é abstrata, mas efetiva e vivida no coração. Assim, o amor a Deus é apresentado como o núcleo interno da Lei, que dá sentido a todos os demais preceitos e se manifesta de forma plena na vida transformada pelo Espírito, revelando que a Nova Aliança não cria um mandamento novo, mas torna perceptível, viva e integral aquilo que já era intenção de Deus desde o Antigo Testamento.

    Portanto, a nova aliança não trouxe uma Lei inteiramente nova, mas deixou à luz aquilo que a Lei antiga sempre foi em essência: um chamado à obediência espiritual, à justiça moral e à participação ativa na aliança com Deus. A dimensão civil da Lei encontra continuidade na ordem ética da comunidade cristã, enquanto a dimensão cerimonial se cumpre plenamente em Cristo, tornando os sacrifícios antigos prefigurações de seu sacrifício definitivo e que deu a Ele, o status de Mediador da Nova Aliança (Hb 8.6).

    O que a Nova Aliança realiza, então, é revelar a profundidade e a integralidade da Lei. O que parecia mera regulamentação social ou rito exterior, agora é entendido como expressão de um pacto vivo, interno e transformador, onde a vontade de Deus é gravada no coração dos redimidos, tornando-os participantes da promessa de redenção anunciada desde Abraão e reiterada em Moisés.

 

9.2 “Nova Aliança no meu sangue”

     A afirmação de Cristo na Última Ceia: ‘Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue’ torna-se, portanto, o ponto culminante dessa revelação da Lei em sua plenitude. O derramamento de seu sangue não substitui a Lei moral, mas cumpre e internaliza seu propósito, tornando evidente que a justiça de Deus se realiza no coração do crente. A dimensão moral, como vimos, é confirmada e aprofundada pelas antíteses do Sermão do Monte. Os aspectos civil e cerimonial, que regulavam a vida comunitária de Israel e orientavam a adoração, encontram seu cumprimento pleno em Cristo e na Igreja; não permanecem como preceitos literais obrigatórios, mas como princípios tipológicos e proféticos que apontam para a realidade espiritual inaugurada na Nova Aliança.

    A Nova Aliança, assim, revela o desígnio contínuo de Deus, mostrando que todas as promessas e instruções do AT encontram cumprimento e clareza em Cristo. Cada ritual, cada preceito e cada promessa, desde Abraão até os profetas, apontam para esta realidade: um pacto em que Deus efetivamente habita no coração do homem, capacitando-o a viver segundo a justiça que Ele requer. A morte de Cristo, sacrificial e vicária, não elimina a obrigação moral do crente, mas concretiza a possibilidade de cumpri-la plenamente, não por mera força humana, mas pelo Espírito que escreve a Lei nos corações (cf. Jr 31:33; 2Co 3:3; Hb 8.10).

    Ao observarmos este padrão, torna-se claro que a Nova Aliança não é um ponto de ruptura, mas a consumação da antiga: aquilo que era sombra e figura, agora é realidade; aquilo que era promessa, agora é cumprimento. E, por isso, a vida do crente é chamada a refletir a fidelidade de Deus, sendo uma extensão viva e prática da Lei eterna, internalizada, não apenas registrada em tábuas de pedra ou em regulamentos externos.

 

9.3 A continuidade vista em Apocalipse

     Essa continuidade da aliança e a internalização da Lei encontram uma de suas expressões mais ricas e literárias no livro de Apocalipse, onde as promessas do Antigo Testamento se entrelaçam com a realidade consumada em Cristo e projetam a consumação escatológica. Apocalipse não apenas cita ou alude ao AT; ele reinterpreta e dramatiza essas promessas, mostrando que a nova aliança não é teórica, mas viva e abrangente.

    O uso de símbolos, visões e tipos: desde selos, trombetas e taças até figuras como o Cordeiro e o Leviatã (ver nota ao final), serve para demonstrar a continuidade da história da salvação. Cada alusão remete a textos do AT, revelando que o propósito divino é unitário e progressivo: o mesmo Deus que conduziu Israel, inspirou os profetas e estabeleceu a Lei agora cumpre sua promessa final em Cristo e na comunidade redimida. Por exemplo, a visão do Cordeiro em Apocalipse 5 ecoa a tipologia do cordeiro pascal, substituindo o sacrifício cerimonial pelo sacrifício consumado de Cristo, enquanto a vitória final sobre o mal retoma as promessas messiânicas dos profetas, reafirmando que a Lei moral permanece, internalizada e vivida pelo Espírito.

Em Apocalipse, o tríplice aspecto da Lei se revela de forma simbólica e escatológica:

 

·        Moral/espiritual: a justiça de Deus e a santidade dos redimidos são reiteradas em mandamentos e exortações (Ap 14:12; 22:14).

·        Civil: a ordem e disciplina da comunidade de fiéis são sugeridas na organização das cidades, das tribos e do julgamento dos inimigos de Deus.

·        Cerimonial: os ritos do AT, tipologicamente cumpridos em Cristo, reaparecem como símbolos que apontam para o sacrifício, a purificação e a adoração eterna (Ap 5; 7; 8–11).

 

    Dessa forma, Apocalipse não apenas celebra o cumprimento das promessas; ele amplia a compreensão da Nova Aliança, mostrando que Cristo não aboliu a essência da Lei moral, mas a consuma, a torna interna e eternamente eficaz, enquanto as promessas do AT alcançam sua plenitude. O que outrora era sombra, figura ou preceito externo, torna-se realidade viva, internalizada e escatologicamente consumada, reforçando que a história da salvação é coerente, contínua e orientada para o pacto eterno de Deus com seu povo.

  

10. Conclusão

     O estudo do uso do Antigo Testamento no Novo revela um padrão sistemático, intencional e coerente. Mais de 4.400 referências entre citações diretas, alusões e expressões como “está escrito”, demonstram que o Novo Testamento não é uma coleção dispersa de textos, nem desconexos do Antigo Testamento, mas uma interpretação cuidadosa e um cumprimento consciente das Escrituras hebraicas. Cada ocorrência evidencia que os autores do NT não apenas recordam os textos do AT, mas os situam em sua plenitude teológica, revelando a continuidade e a profundidade do plano divino.

    Dessa análise emergem duas constatações fundamentais:

 A autoridade do Antigo Testamento permanece íntegra e indiscutível, sendo continuamente reinterpretada e aplicada no contexto cristão. A Lei, os profetas e os Salmos não são meros antecedentes históricos, mas expressões vivas da vontade de Deus, agora plenamente reveladas em Cristo. O que antes se apresentava como norma externa, tipologia ou promessa parcial, agora se manifesta como realidade interna, espiritual e escatologicamente consumada, tornando-se um guia moral, espiritual e comunitário permanente para o povo de Deus.

    A continuidade das alianças manifesta-se de forma progressiva e coerente ao longo da história da salvação: cada pacto antecedente aponta e se cumpre na Nova Aliança inaugurada por Cristo. Ao declarar que o cálice representa a nova aliança em seu sangue, Jesus não anula a Lei, mas expõe sua finalidade última, mostrando que a moral, internalizada no coração pelo Espírito, é a dimensão que permanece para os redimidos. Ele internalizou os preceitos morais, esclareceu os tipos e figuras, e garantiu que a promessa de Deus fosse plenamente acessível aos redimidos pelo Espírito, cumprindo aquilo que a Lei e os profetas antecipavam. Dessa forma, o plano divino revela uma continuidade que é ao mesmo tempo histórica e teológica, onde cada promessa e cada instrução se encaixam no propósito unificador de Deus, culminando na perfeita manifestação de sua vontade na Nova Aliança.

    Ao observarmos essa teia de citações, alusões, antíteses e símbolos, particularmente em Apocalipse, onde a linguagem profética do AT é transposta em visões e imagens escatológicas, percebemos que o Novo Testamento não apenas preserva a memória do AT, mas a prolonga, aprofunda e ilumina. Cada profecia, promessa e preceito encontra realização em Cristo e na comunidade que dele deriva. Assim, o leitor é convidado a contemplar uma narrativa contínua, progressiva e integrada da salvação, onde passado, presente e futuro se encontram, e onde a fidelidade de Deus se manifesta de forma irrevogável, eficaz e transformadora.

    Em última análise, o estudo revela que a Lei, longe de ser um conjunto de preceitos obsoletos, permanece viva e vigente, cumprida e internalizada em Cristo, e que a história da redenção, do AT ao NT, forma um único e coerente pacto de amor, justiça e misericórdia divinos.



Nota:

Leviatã - ¹ O termo Leviatã não aparece em Apocalipse, mas sua menção aqui remete à tradição veterotestamentária, onde designa um monstro marinho associado ao caos e às forças do mal (cf. Jó 41; Sl 74:14; Is 27:1). O livro do Apocalipse retoma essa simbologia de forma tipológica nas figuras do dragão (Ap 12:3, 9; 20:2) e da besta que sobe do mar (Ap 13:1), apresentando-as como manifestações escatológicas do mal em confronto com o Cordeiro. Assim, o uso do termo “Leviatã” no presente estudo não é literal, mas interpretativo, servindo para evidenciar a continuidade das imagens bíblicas do mal derrotado por Deus.

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