Nos dias de Cristo, os fariseus se destacaram como um dos principais grupos religiosos do judaísmo. Flávio Josefo, em suas obras históricas, descreve-os como uma seita rigorosa, zelosa em preservar a Lei e as tradições dos antepassados. Eles eram reconhecidos entre o povo por sua influência, pois, segundo Josefo, gozavam de grande estima popular ao apresentavam-se como guardiões da santidade da nação.
No livro Antiguidades Judaicas (XVIII, 1.3), Josefo declara: "Os fariseus vivem com grande parcimônia e se abstêm dos prazeres, seguem em conformidade com a letra da lei. Gozam de estima entre o povo, e tudo o que dizem sobre a religião é acreditado, tanto que mesmo os reis e os mais altos dignitários seguem seus decretos." Essa influência demonstra como eles tinham poder de moldar a consciência religiosa de Israel. Contudo, essa aparência de zelo escondia um grave problema: a superficialidade de sua compreensão da Lei. Para eles, a Lei mosaica funcionava quase como um código civil e cerimonial, destinada a organizar a vida externa da sociedade, e não como expressão da vontade santa e espiritual de Deus que deveria conduzir o coração do homem à orientação interna e verdadeira.
Jesus desmascara essa distorção repetidas vezes. Os fariseus se preocupavam em dizimar da hortelã, endro e cominho, mas negligenciavam “os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé” (Mt 23.23). Transformaram a Lei, que é “santa, justa e boa” (Rm 7.12), em um fardo insuportável, por confundi-la com um sistema meramente externo de observâncias. E por assim fazerem, corromperam sua finalidade, pois a Lei fora dada para revelar o caráter santo de Deus e apontando para a necessidade de um Redentor.
Mas, se olharmos ao nosso redor, veremos que o espírito farisaico não ficou restrito ao primeiro século. Hoje, ele ressurge com outra roupagem. Se antes os fariseus distorceram a Lei reduzindo-a as disposições exteriores, agora muitos distorcem a mensagem cristã anulando a própria necessidade da Lei. Enquanto os antigos diziam: “cumpro externamente e estou justo diante de Deus”, os modernos proclamam: “não há Lei para cumprir, pois isso era só para os judeus”. Ambos, no entanto, incidem no mesmo pecado: rejeitam a verdadeira função da Lei como revelação da santidade de Deus e espelho que expõe o pecado humano (Rm 3.20).
Não podemos deixar de apontar também os legalistas modernos que, à semelhança dos antigos, desprezam ou simplesmente desconhecem os princípios espirituais da Lei divina. Eles visam um sistema de regras externas, onde a obediência é medida por aparências e formalismos, e não pela transformação do coração. Tais pessoas parecem defender a Lei, mas na prática a corrompem, pois ignoram que sua essência é espiritual (Rm 7.14) e que sua aplicação verdadeira só pode ser compreendida em Cristo. Assim como os fariseus de outrora, eles se vangloriam de observâncias externas, mas deixam de lado a justiça, a misericórdia e a fé; por isso, permanecem culpados diante do mesmo Deus que sondou os fariseus no primeiro século.
É comum ouvir, em nossos dias, vozes que afirmam que o cristão nada tem a ver com mandamentos, que tudo foi cravado na cruz e, portanto, qualquer referência à Lei seria legalismo. Esta leitura superficial e perversa repete o erro dos fariseus antigos: separa a Lei da sua dimensão espiritual que aponta os pecados e nos é guia para santificação. A diferença é que, se antes a Lei era idolatrada como um fim em si mesma, agora é desprezada como se não tivesse valor algum. Ambas as posturas revelam um coração endurecido, incapaz de enxergar que a Lei conduz a Cristo (Gl 3.24) e que, mesmo após a obra consumada no Calvário, ela permanece como norma de vida santa para o povo de Deus, escrita agora em corações regenerados pelo Espírito (Hb 8.10).
É interessante notar que Josefo também descreveu outras seitas judaicas da época, tais como os saduceus e os essênios, a fim de mostrar como cada grupo manipulava a Lei à sua maneira. Sobre os saduceus, ele afirma que rejeitaram a tradição oral, negaram a imortalidade da alma e a ressurreição (Antiguidades, XVIII, 1.4). Já os essênios, por sua vez, eram mais rigorosos, viviam em comunidades e se afastavam do Templo, julgando-se os verdadeiros puros (Guerra dos Judeus, II, 8.2-13). Essas referências históricas confirmam que o contexto em que Cristo viveu estava saturado de interpretações parciais e equivocadas da Lei, todas distantes do espírito da revelação divina.
Assim, os fariseus de ontem e os de hoje se encontram no mesmo ponto: desfiguram a Lei do Senhor. Uns reduziram a um sistema civil e cerimonial; outros, a aboliram completamente sob o pretexto da graça. Mas a Escritura é clara: a graça não anula a Lei, antes ela a confirma (Rm 3.31). Os verdadeiros discípulos de Cristo compreendem que a Lei não é um caminho de salvação, mas a estrada que revela o caráter de Deus, expõe nossa miséria e nos impele a correr para Cristo, Aquele que cumpriu perfeitamente toda a justiça e nos capacita a andar em novidade de vida. É o Espírito transformando a letra que mata em um meio de santificação
Portanto, quem são os fariseus de hoje? São todos aqueles que, ainda que sob o nome de cristãos, repetem a mesma iniquidade dos antigos: usam mal a Lei, ou para se justificarem em obras externas, ou para anularem sua validade interna para santificação. Mas os que realmente conhecem a Deus percebem que a Lei e o Evangelho não são inimigos, mas companheiros inseparáveis: a Lei revela a necessidade da graça, e a graça nos capacita a obedecer à Lei com amor e alegria.
Eis porque Paulo declara: "Invalidamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei" (Rm 3.31). A fé não cancela a Lei, mas a coloca em seu devido lugar, apontando para Cristo e capacitando o crente a viver em conformidade com ela. Tiago, por sua vez, adverte contra uma fé morta, sem obras: “Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma... Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou,” (Tg 2.17, 22). A verdadeira fé é viva, e com razão por isso se expressa em conformidade com a Lei. Dessa forma, o testemunho apostólico confirma que Lei e fé não são rivais, mas duas faces de uma mesma realidade: a santidade de Deus sendo refletida na vida dos que foram salvos por sua graça.
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